Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros* - 1996
A Livraria José de Alencar estava cheia de gente para conhecer um personagem famoso. A rapaziada da rua do Comércio foi toda naquela direção, onde a turma do Instituto se comprimia para ver de perto o primo do Dr. Théo, saber como era aquele homem misterioso que vivera tantos anos na Rússia, expulso do Brasil por Getúlio Vargas, porque era comunista.
Imitando os gestos do primo Octavio, a Vera Brandão contara histórias incríveis dos
alemães invadindo a Rússia, matando vinte milhões de pessoas. Convidou todo
mundo para escutá-lo dizer, de memória, capítulos inteiros de Canais e Lagoas,
recitar versos de Laura Brandão e contar histórias de suas experiências de
exilado, “correndo o mundo todo”.
A turma desceu em peso, e lá estava eu hipnotizada
pela narrativa daquele homem tão comum, falando sem qualquer sotaque, como se
nunca tivesse saído de Alagoas por mais de uma semana.
Somente seus olhos nos olhavam de todos os
cantos do mundo!
Fascinada por suas histórias, passei a
ouvi-lo na Livraria Ramalho, no Instituto Histórico, lia todos os artigos que
publicava, e arranjava desculpas para pedir emprestados livros ou cadernos à
Vera, e poder fazer perguntas ao hóspede que nunca se cansava de responder,
ensinar e despertar a curiosidade dos jovens que o procuravam.
Como tudo tem fim, acabou-se a visita de
Octavio Brandão a Maceió, foram-se embora o ano de 60, o curso científico, a
turma do Instituto, e a adolescência de tantas surpresas.
Revejo, com olhos de exilada, um homem
sozinho sentado num banco da Cinelândia, em janeiro de 1964.
Num encontro de expatriados, me aproximo,
relembro as conversas em Maceió e comento a euforia política das esquerdas no
Rio. Do fundo de uma cela de prisão, sacudindo o frio da solitária que consumiu
tanto tempo de sua vida, me olha e fala com a experiência de quem sente pelas
dores dos ossos a aproximação do inverno: - Estamos no poder! –
Irresponsabilidade política! O pretexto para o poder armado dar o golpe no povo
brasileiro!
Explicou-me longamente os equívocos das esquerdas, analisou a realidade do Brasil no contexto da Guerra Fria e falou de novos anos de chumbo sendo articulados nas conspirações golpistas da direita. Conversamos um pouco mais, cada um foi para seu lado, e nunca mais o vi.
Em março daquele mesmo ano, um irmão meu,
Emmanoel, então da diretoria do Sindicato dos Bancários, conversou longamente
com Octavio Brandão, também na Cinelândia, e chegou em casa impressionado com a
certeza que ele lhe transmitira na iminência de um golpe.
Só fui saber dele anos depois, na década
de 70, pelas notícias trazidas por dois alunos, Carlos Walter e Afonso Carlos,
sempre em conversas com ele em Santa Teresa. Por outro aluno, o Béo, continuei
acompanhando de longe o desenrolar daquela existência.
A leitura de Combates e Batalhas, e depois,
a discussão daqueles episódios com Dr. Theo Brandão, Moacir Sant’ana ou Dr.
Werter, me fizeram constatar que Octavio Brandão fazia parte de meu imaginário
há muitos anos, convidando-me para uma conversa longa e responsável, da qual
havia escapado sempre, dando maior atenção a outros interlocutores, à discussão
de outros temas.
Na Livraria Argumento, no Leblon, em
dezembro de 1995, conheci Dionysa Brandão.
Durante muito tempo minhas tentativas de
contatá-la se haviam frustrado, até que desisti. Naquela noite, chegando muito
tarde para o lançamento de A Trinca do
Curvelo, sua filha Laura, minha conhecida de muitos e muitos anos, nos
apresentou.
De tanto conversar com a Dra. Nise da
Silveira, no riso da mulher de 70 anos gostei da garotinha em quem a Dra. tantas
vezes deu banho, na década de 20, enquanto Laura e Octavio Brandão enfrentavam
a luta, tentando limpar o mundo da miséria das desigualdades. O encontro foi
rápido, mas durou o bastante para ouvir dela que 1996 marcaria 100 anos de
nascimento de seu pai e 65 da expulsão da família para o exílio.
Uma livraria, a história de um exilado,
alguém falando de outros tempos e outras paisagens, e o milagre de Proust se
reproduziu. Eu podia correr em busca do tempo, para que ele não fosse perdido.
Dionysa e as filhas, Elvia e seus admiradores na fila de autógrafos, todos se transfiguraram
na minha turma do Instituto, 35 anos se apagando no escoar do tempo, e eu tinha
outra vez 18 anos, correndo para conhecer Octavio Brandão.
Eu podia tudo, eu queria tudo, e na mesma
hora falei rápido:
Vamos fazer o centenário de Octavio
Brandão! [...]
*Antropóloga, Prof. aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.
Fonte: Octávio Brandão Centenário de um Militante na Memória do Rio de Janeiro, Org. Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, 1996, UERJ.