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quinta-feira, 7 de outubro de 2021
terça-feira, 21 de setembro de 2021
Centenário de Um Militante na Memória no Rio de Janeiro
Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros* - 1996
A Livraria José de Alencar estava cheia de gente para conhecer um personagem famoso. A rapaziada da rua do Comércio foi toda naquela direção, onde a turma do Instituto se comprimia para ver de perto o primo do Dr. Théo, saber como era aquele homem misterioso que vivera tantos anos na Rússia, expulso do Brasil por Getúlio Vargas, porque era comunista.
Imitando os gestos do primo Octavio, a Vera Brandão contara histórias incríveis dos
alemães invadindo a Rússia, matando vinte milhões de pessoas. Convidou todo
mundo para escutá-lo dizer, de memória, capítulos inteiros de Canais e Lagoas,
recitar versos de Laura Brandão e contar histórias de suas experiências de
exilado, “correndo o mundo todo”.
A turma desceu em peso, e lá estava eu hipnotizada
pela narrativa daquele homem tão comum, falando sem qualquer sotaque, como se
nunca tivesse saído de Alagoas por mais de uma semana.
Somente seus olhos nos olhavam de todos os
cantos do mundo!
Fascinada por suas histórias, passei a
ouvi-lo na Livraria Ramalho, no Instituto Histórico, lia todos os artigos que
publicava, e arranjava desculpas para pedir emprestados livros ou cadernos à
Vera, e poder fazer perguntas ao hóspede que nunca se cansava de responder,
ensinar e despertar a curiosidade dos jovens que o procuravam.
Como tudo tem fim, acabou-se a visita de
Octavio Brandão a Maceió, foram-se embora o ano de 60, o curso científico, a
turma do Instituto, e a adolescência de tantas surpresas.
Revejo, com olhos de exilada, um homem
sozinho sentado num banco da Cinelândia, em janeiro de 1964.
Num encontro de expatriados, me aproximo,
relembro as conversas em Maceió e comento a euforia política das esquerdas no
Rio. Do fundo de uma cela de prisão, sacudindo o frio da solitária que consumiu
tanto tempo de sua vida, me olha e fala com a experiência de quem sente pelas
dores dos ossos a aproximação do inverno: - Estamos no poder! –
Irresponsabilidade política! O pretexto para o poder armado dar o golpe no povo
brasileiro!
Explicou-me longamente os equívocos das esquerdas, analisou a realidade do Brasil no contexto da Guerra Fria e falou de novos anos de chumbo sendo articulados nas conspirações golpistas da direita. Conversamos um pouco mais, cada um foi para seu lado, e nunca mais o vi.
Em março daquele mesmo ano, um irmão meu,
Emmanoel, então da diretoria do Sindicato dos Bancários, conversou longamente
com Octavio Brandão, também na Cinelândia, e chegou em casa impressionado com a
certeza que ele lhe transmitira na iminência de um golpe.
Só fui saber dele anos depois, na década
de 70, pelas notícias trazidas por dois alunos, Carlos Walter e Afonso Carlos,
sempre em conversas com ele em Santa Teresa. Por outro aluno, o Béo, continuei
acompanhando de longe o desenrolar daquela existência.
A leitura de Combates e Batalhas, e depois,
a discussão daqueles episódios com Dr. Theo Brandão, Moacir Sant’ana ou Dr.
Werter, me fizeram constatar que Octavio Brandão fazia parte de meu imaginário
há muitos anos, convidando-me para uma conversa longa e responsável, da qual
havia escapado sempre, dando maior atenção a outros interlocutores, à discussão
de outros temas.
Na Livraria Argumento, no Leblon, em
dezembro de 1995, conheci Dionysa Brandão.
Durante muito tempo minhas tentativas de
contatá-la se haviam frustrado, até que desisti. Naquela noite, chegando muito
tarde para o lançamento de A Trinca do
Curvelo, sua filha Laura, minha conhecida de muitos e muitos anos, nos
apresentou.
De tanto conversar com a Dra. Nise da
Silveira, no riso da mulher de 70 anos gostei da garotinha em quem a Dra. tantas
vezes deu banho, na década de 20, enquanto Laura e Octavio Brandão enfrentavam
a luta, tentando limpar o mundo da miséria das desigualdades. O encontro foi
rápido, mas durou o bastante para ouvir dela que 1996 marcaria 100 anos de
nascimento de seu pai e 65 da expulsão da família para o exílio.
Uma livraria, a história de um exilado,
alguém falando de outros tempos e outras paisagens, e o milagre de Proust se
reproduziu. Eu podia correr em busca do tempo, para que ele não fosse perdido.
Dionysa e as filhas, Elvia e seus admiradores na fila de autógrafos, todos se transfiguraram
na minha turma do Instituto, 35 anos se apagando no escoar do tempo, e eu tinha
outra vez 18 anos, correndo para conhecer Octavio Brandão.
Eu podia tudo, eu queria tudo, e na mesma
hora falei rápido:
Vamos fazer o centenário de Octavio
Brandão! [...]
*Antropóloga, Prof. aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.
Fonte: Octávio Brandão Centenário de um Militante na Memória do Rio de Janeiro, Org. Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, 1996, UERJ.
sábado, 14 de agosto de 2021
A Estátua de Pushkin nas Ruas de Moscou nos Anos 1930
Carlos Walter Porto-Gonçalves* (30/09/2020)
Professor Carlos Walter Porto-Gonçalves |
Por um desses acasos da
vida tive a fortuna de ser vizinho de Otavio Brandão (1896-1980), alagoano de
Viçosa, que se dizia Caeté por sua inquietude intelectual e política. Quando o
conheci, em 1976, ele já se encontrava fora da militância política a que dedicara
toda sua vida. Em 1916, Otávio Brandão fundara, junto com outros companheiros,
a Confederação pela Libertação da Terra e do Homem, em Viçosa e, em 1922, o
Partido Comunista, em Niterói, quando já morava no Rio de Janeiro. Sobre a
fundação do PC, Otavio Brandão me confidenciara uma curiosidade: o 25 de março
de 1922, data oficial da fundação do PC, é a data que ele chamava data de
fundação histórica que ele diferenciava da data de fundação cronológica (qual?)
em que, junto com outros companheiros, fundaram o Partido Comunista como “única
maneira de implantar o anarquismo no Brasil”. Só depois é que soubera que
anarquismo e comunismo não seriam a mesma coisa e, por isso, refundaram o PC em
25 de março, agora sim, data histórica e não cronológica. Otávio é uma figura
ímpar que o Brasil bem merecia conhecer melhor. Ele, formado em História
Natural no Recife, foi o primeiro brasileiro a descobrir que havia petróleo no
Brasil. E fora desqualificado pelas elites de Alagoas com um argumento típico
do que Nelson Rodrigues, mais tarde, chamaria de espírito de cachorro
vira-lata: “se no Brasil não tem
petróleo, logo em Alagoas é que vai ter?”. Assim, me contara o alagoano com
espírito caeté, Otavio Brandão.
As histórias de Brandão
são importantes para o conhecimento das esquerdas brasileiras. Já em 1926
publicara o que é a primeira interpretação da nossa história que se reivindica
marxista-leninista, com seu livro Agrarismo
e Industrialismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e
a guerra de classes no Brasil. Em 1928, como membro do BOC – Bloco Operário
Camponês – se elegera vereador no Rio de Janeiro, junto com Minervino de
Oliveira, marmorista de Magé que, em 1930, haveria de ser o primeiro candidato
operário à presidência da República. E a proposta do BOC era de uma aliança de
classe operário-camponesa que visava uma reforma agrária através de uma
revolução burguesa que acabaria com “o latifúndio e o feudalismo no Brasil”. Em
respeito à memória histórica da luta dos trabalhadores brasileiros, Luiz Inácio
Lula da Silva, não é o primeiro candidato operário a Presidente da República,
mas sim Minervino de Oliveira.
Otávio se encontrava
preso por sua militância política quando da revolução de 1930 que levaria
Getúlio Vargas ao poder. Contou-me ele que a anistia aos presos políticos do
governo Washington Luiz não o alcançara e que “foi o único preso político que permaneceu preso após a revolução de
1930” e que seria extraditado. Contou-me Brandão que bem que tentou
negociar que sua extradição fosse para algum país da América Latina. Não foi
bem-sucedido. Tentou, ainda, negociar que fosse para a Alemanha, segundo ele, “para que pudesse estudar Marx e Engels
diretamente em alemão”. Também não foi bem-sucedido. Acabou indo parar na
União Soviética não sei por quais caminhos. Lá viveu entre 1930 e 1945, no auge
do estalinismo. Aliás, O. Brandão nutria simpatias pelo grande líder Josef
Stalin e nas conversas que tínhamos onde eu questionava várias facetas do
estalinismo, ao final de sua vida, em nossas conversas, me concedera: “Stalin fora grande nos erros e nas virtudes”,
dissera.
E dessas conversas é que
pude desfrutar de uma revelação de Otavio que, talvez, nos dê uma pista de como
o povo de Moscou vivera essa quadra histórica sob o comando de Stalin. Contou-me
Brandão que, por volta de 1935, corria nas ruas da capital soviética uma piada
sobre uma grande festa popular para homenagear Alexander Pushkin (1799-1837),
considerado o maior poeta romântico russo. Segundo Brandão contando o que
ouvira, a Praça Vermelha se apinhava de gente em torno de uma grande estátua
coberta. Chegada a hora da cerimônia de homenagem, A Internacional foi cantada
por todos os presentes e a estátua começou a ser descerrada. Logo no início,
pode-se ver uma cabeleira com entradas agudas; logo em seguida, à medida que
baixava o pano, as grossas sobrancelhas; logo abaixo o nariz e o bigode
característicos de Josef Stalin. Feito o suspense, eis que aparece logo em
seguida, entre os braços de Stalin, um livro de Pushkin. Justa homenagem!
O que me chama a atenção
nessa anedota é, justamente, o fato de ser uma anedota que, como soe acontecer,
costuma ser um bom indicativo do imaginário popular. O povo russo, quase sempre
de fora dos debates entre estalinistas e anti-estalinistas, talvez aqui se
apresente com toda a sutileza do inconsciente coletivo.
Todas as histórias aqui
reunidas não são resultado de nenhuma pesquisa historiográfica, mas
simplesmente fruto de um diálogo de dois amigos de gerações diferentes. Devo
muito de minhas convicções a esse amigo, sobretudo por seu espírito Caeté que,
pela inteligência de uma outra alagoana, a Professora Luitgarde Cavalcanti, me
fez refinar minhas simpatias por esse Brasil com mais de 305
etnias/povos/nacionalidades indígenas, com suas mais de 274 línguas. E, mais,
essa ideia se reforçava ainda com as lembranças do que Brandão não se cansava
de dizer que, quando de suas responsabilidades diante do jornal A Classe
Operária, se impunha a presença de correspondentes regionais do jornal “nos
canaviais do NE, nos cacauais da Bahia, nos seringais da Amazônia” para que o
partido tivesse uma visão da diversidade do desenvolvimento desigual e
combinado da formação social do capitalismo no Brasil. Para quem, como eu,
tinha uma formação em Geografia não deixava de ser um presente.
Numa época, como a nossa,
em que os nacionalismos, à direita e à esquerda, voltam à balia talvez seja um
bom momento de recuperarmos esse espírito Caeté e estarmos atentos ao
colonialismo interno que costuma se esconder diante dos inimigos de fora para,
reproduzir internamente, a colonialidade do saber e do poder. Afinal, até
quando o chamado estado-nação poderá continuar a ignorar a diversidade de
povos/etnias/nacionalidades que o habitam? Enfim, como o estado-nação volta à
baila diante de um globalitarismo (Milton Santos) que não só aumentou a
concentração de riqueza a níveis jamais vistos na história como, ainda, coloca
em risco própria humanidade com o colapso ambiental que o acompanha, está na
hora de reinventarmos o estado como plurinacional, como sugerem os ventos que
vêm do mundo andino.
Fonte: https://iela.ufsc.br/noticia/estatua-de-pushkin-nas-ruas-de-moscou-nos-anos-1930
*Carlos Walter Porto-Gonçalves, geógrafo, autor de livros sobre geografia social.