Marisa Brandão**
Conheci Octavio Brandão ainda bem criança, convivi com ele dos três aos quase dezessete anos de idade. Não me lembro bem do início de nossa convivência, mas recordo que ainda bem pequena, cinco, seis anos, ele já era parte importante de minha vida. Rapidamente tornou-se muito mais que um avô, tornou-se um pouco pai, amigo e também meu mestre. As recordações são tantas, em tantos sentidos...
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Octavio Brandão |
No apartamento em que vivíamos, existia um comprido corredor, onde ele gostava de se colocar em uma das pontas e começar a cantar, pois assim havia certa acústica. Cresci ouvindo ele cantar música clássica - como as Danças Norueguesas e Danúbio Azul (acho que eram minhas prediletas, não necessariamente as dele) - cantigas populares do nordeste, a Marselhesa, a Internacional Comunista, marchinhas do Partido Comunista Brasileiro. Também gostava de recitar poesia e, um dia, fiz uma surpresa para ele, decorei e recitei uma poesia de Casimiro de Abreu que recordava sua infância (Meu oito anos), o que ele recebeu com enorme emoção.
Morávamos em um condomínio que fica no caminho de uma favela, onde é preciso subir várias ladeiras. Muitas vezes, quando nossos vizinhos moradores da favela por lá passavam, alguns conhecidos, outros não, lhe pediam um copo d'água, pois o calor e o esforço de subir ladeira trazia muita sede. Sempre, ao dar água a água me falava da realidade e da miséria do povo brasileiro, principalmente do povo nordestino, sua origem. Sempre afirmava, com muito orgulho, que era um caboclo, descendente dos índios Caetés de Alagoas. Falava então de como era necessário compreender o povo e se solidarizar com ele; falava de suas andanças por Alagoas, depois no Rio, e mais tarde já no Partido Comunista. Contava como, desde Alagoas, tinha procurado estudar e compreender a realidade social (apesar de ter se formado em Farmácia) e ainda como, bem no início do século passado, tinha encontrado sua principal base teórica em Marx, Engels e Lenin.
Era rigoroso, mas sempre com muito carinho. Em meio às suas críticas aos EUA, com coerência, criticava nossas atitudes (as de seus netos e outras crianças) como a de mascar chiclete, afirmando que não passavam de "americanices", que estávamos apenas copiando coisas ruins dos Estados Unidos. Quando vinham as férias escolares, um horário de estudos diário era estabelecido, mas sempre procurando me fazer perceber o prazer de aprender. O estudo de história na escola era muito deficiente, época que ainda cobravam que se decorasse datas e nomes, o que me era bastante difícil; mas em casa eu ouvia, com curiosidade e atenção, ele falar sobre a história que viveu e a história que aprendeu.
Um dos episódios que eu mais gostava de ouvir era o de quando voltou da União Soviética, em 1946, após 15 anos de exílio, e, tendo de se candidatar a vereador, quase sem tempo para fazer campanha, foi muito bem recebido, por um lado, pelos antigos operários da Gávea, sua base eleitoral em 1928, mas também pelos filhos destes operários, que através de seus pais, conheciam a trajetória de Octavio.
Ria muito quando contava de como sempre conseguira fugir da polícia porque, além de conhecer cada ladeira, cada escada, cada caminho do bairro de Santa Tereza, onde morava, também tinha técnicas especiais de disfarce. Lembro-me que lhe pedia para ensinar estas técnicas e ele, até o final, com mais de 80 anos, simplesmente respondia que não, pois poderia precisar utilizá-las de novo. Quando atravessávamos os arcos da Lapa, de bonde, mostrava o Batalhão da Polícia Militar que fica ali e, rindo muito, dizia que dezenas de vezes lá esteve preso e dezenas de vezes conseguiu sair!
Foi assim que cresci, ouvindo-o contar episódios da história do Brasil e da União Soviética; falando de seus sonhos, desde muito jovem, sonho de um Brasil independente, sonho de um Brasil igualitário, sonho de uma humanidade unida e justa! Ouvindo-o dizer que deus não existe, e que um mundo justo só se alcança através da luta política, luta que necessita de só se alcança através da luta política, luta que necessita de sólida base teórica. Sempre me dizia: "você precisa ler Marx, Engels e Lenin" (ele falava exatamente nesta ordem), Defendia, até o final, a Revolução Russa, o processo revolucionário, no Brasil e no mundo, a luta pelo socialismo e pelo comunismo.
Sem dúvida, Octavio Brandão deve ter cometido erros, políticos e teóricos; sem dúvida sofreu muito, foi criticado e criticou quando necessário - e possível -, mas nunca observei nenhuma nuance de arrependimento em sua face, em suas rugas, em seu largo e acolhedor sorriso, em seu forte abraço, em sua contagiante alegria pela vida.
Divulgar a primeira tentativa de interpretação marxista da realidade brasileira significa reafirmar as ideias teóricas e políticas de Marx, significa reafirmar seus ideais comunistas; ideias e ideais aos quais Octavio Brandão desde jovem se dedicou. Publicar Agrarismo e Industrialismo agora, quase 80 anos depois de sua primeira edição, é, portando, uma maravilhosa homenagem à vida e luta de Octavio Brandão. Mas parece que a grande homenagem que esta publicação traz, aquela a que ele certamente agradeceria com toda emoção, é a de saber que, mesmo com toda força destrutiva exercida pelo capitalismo, os sonhos e lutas, aos quais dedicou sua vida, continuam vivos.
* Artigo introdutório publicado na 2ª edição de Agrarismo e Industrialismo, Editora Anita Garibaldi, 2006.
** Marisa Brandão, filha de Dionysia Brandão e neta de Octavio Brandão, é professora de Sociologia do CEFET-RJ.