Nota à margem da história do comunismo brasileiro
Alvaro Bianchi **
A acidentada vida do militante comunista Octavio Brandão (1896-1980) confunde-se com a história do comunismo brasileiro. Primeiro católico, depois pensador materialista, anarquista e, por fim, comunista, Brandão viveu intensamente o próprio desenvolvimento cultural e político do país. Não é uma trajetória única. Outros, como Astrojildo Pereira e Everardo Dias, seguiram caminhos similares até se encontrarem no Partido Comunista do Brasil em 1922 e depois. [1]
A trajetória política de Brandão tem início na década de 1910, quando predominavam as correntes anarquistas no interior do movimento operário brasileiro. Anarco-comunistas, anarco-sindicalistas e sindicalistas revolucionários eram ativos desde o final do século XIX. Tais correntes contribuíram de modo decisivo para a formação de um nascente movimento sindical e para a organização e educação dos trabalhadores brasileiros. Parte importante dessa atividade coube a migrantes italianos, portugueses e espanhóis, que trouxeram em sua bagagem não apenas livros e jornais anarquistas, como também uma sólida experiência militante.
O apogeu desse movimento pode ser localizado na greve geral de 1917, em São Paulo, quando os anarquistas se destacaram. Nessa ocasião, a tenacidade e a coragem de pessoas como o jovem espanhol José Martinez, assassinado em frente à fábrica Mariângela, em São Paulo, e os jornalistas Edgard Leuenroth e José Oiticica, fizeram com que o anarquismo fosse inscrito na história e na memória do movimento operário brasileiro. No mesmo ano em que uma greve geral paralisava a principal cidade industrial do país, uma revolução sacudiu a Rússia, derrubou o czar em fevereiro e proclamou a República dos Sovietes em outubro. O jovem movimento operário brasileiro recebeu a notícia com entusiasmo e não foram poucos os que consideram tratar-se de uma revolução anarquista e que pensaram ser Vladimir Lenin um “marxista-bakuninista”. Nas páginas dos jornais ácratas, A Plebe dentre eles, Brandão registrou seu apoio à Revolução Russa.
Mas os anarquistas foram além do simples
apoio. Segundo Astrojildo Pereira, influenciados por essa revolução, fundaram
um Partido Comunista do Brasil, cujo programa teria sido redigido por José
Oiticica – Princípios e fins (1919) – e desenvolvido posteriormente por Hélio
Negro e Edgard Leuenroth – O que é o maximismo ou bolchevismo (1919).[2] O
programa elaborado por Oiticica era extremamente genérico, procurando afirmar
aqueles que seriam os princípios do comunismo. Escrito sob a forma de
manifesto, em um tom literário, não se distinguia do programa anarquista, seja
na recusa à participação eleitoral como na negação do Estado. Nada era dito
nele a respeito da Revolução Russa.
Negro e Leuenroth, por
sua vez, escreveram seu texto antes do 1º de maio de 1919, como deixam
claramente a entender na apresentação, e preferem referir-se a uma Aliança
Comunista e não a um partido.[3] Tal opúsculo fornece pistas mais interessantes
para entender o contexto intelectual e político da época. Nele seus autores
afirmavam que o “maximismo” dizia respeito à posição majoritária obtida pela
fração de Lenin no Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo de
1903, contra os minimistas ou mencheviques.
Apresentando de modo
detalhado o programa dos autodenominados “maximistas” e engalfinhando-se com os
conservadores da época, o “programa comunista” apresenta as razões do apoio dos
anarquistas brasileiros ao novo regime soviético. Segundo seus autores: “O
regime vigente na Rússia é uma organização de defesa e reconstrução, a caminho
do almejado comunismo libertário, que trará para todos a paz, o bem-estar e a
liberdade” (Negro; Leuenroth, 1919, p.8). Assim, embora Negro e Leuenroth
declarassem que o comunismo aboliria todos os “cargos governativos, legislativos,
municipais, judiciários, militares, religiosos” não consideravam que isso fosse
contraditório com um regime político transitório como o existente na Rússia –
“a caminho do almejado comunismo libertário” – cuja função seria defender e
reconstruir a sociedade russa em novos moldes (Negro; Leuenroth, 1919, p.73).
O jornal dirigido por
Leuenroth, A Plebe, noticiou a fundação do novo partido e Astrojildo Pereira,
um de seus fundadores, relatou os atos organizados pela agremiação por ocasião
do aniversário da Comuna de Paris, da Abolição da Escravidão no Brasil e da
Tomada da Bastilha (Pereira, 1976, p.62). O Partido Comunista criado em 1919
teve, entretanto, vida curta e são poucas as referências a seu respeito.
Dissolveu-se à medida em que as notícias da Revolução Russa chegavam e ficava
clara a distância existente entre os bolcheviques e os anarquistas. Não perdeu
força, entretanto, a ideia de criação de um partido comunista no Brasil, o que
de fato viria a ocorrer poucos anos mais tarde.
A fundação do Partido
Comunista do Brasil (PCB), Seção Brasileira da Internacional Comunista, em
março de 1922, contou com a presença de antigos militantes anarquistas
finalmente convertidos às ideias do bolchevismo russo. A forte herança do
anarquismo coexistia nos novos comunistas com um pesado legado positivista e
com uma persistente fé maçônica. Embora a bibliografia existente reconheça a
influência do pensamento ácrata entre os fundadores do PCB, é necessário
destacar a combinação dessa com as ideias de Auguste Comte e Herbert Spencer,
por um lado, e, por outro, seu vínculo com a maçonaria.[4]
Foram assim libertários,
em sua maioria, e maçons, alguns, os criadores do PCB. Ao todo, nove delegados
estiveram presentes no Congresso de Fundação, representando 73 militantes inscritos
em diversos grupos comunistas regionais (Pereira, 1976, p.66). Com a exceção de
Manoel Cendón, espanhol que havia vivido na Argentina e sido influenciado pelo
socialismo de Juan B. Justo, os demais delegados provinham das fileiras do
anarquismo (Brandão, 1978, p.22; Rodrigues, 1996, p.364). Poucos meses depois,
em outubro de 1922, Brandão, também oriundo do movimento ácrata se somaria ao
PCB.
“A
vida é uma batalha”
Octavio Brandão nasceu em
Viçosa, interior de Alagoas, no ano de 1896, e morreu no Rio de Janeiro em
1980. Não passou incólume nem passivamente pelo seu tempo e nem pretendeu
fazê-lo. Interpretou sua própria vida como uma sucessão de combates e batalhas:
“Na vida tive de travar combates e batalhas sempre desiguais. Uns terminaram em
vitórias e outros em derrotas”, escreveu em sua autobiografia, na qual
predomina o amargo gosto das derrotas. É evidente a tentativa de Brandão de
fundir sua existência com a história e fazer das duas uma coisa só. Esse
empenho aparece claramente em uma grande quantidade de escritos autobiográficos
reunidos e preservados no Arquivo Edgard Leuenroth, nos quais Brandão se
mimetiza nessa realidade histórico-cultural chamada Brasil. No final de sua
vida insistentemente se refere a si próprio como um caboclo em um país de
mestiços, uma figura que parece saída das páginas de Euclides da Cunha, um de
seus escritores favoritos:
Sou
escritor brasileiro. Índio caboclo do interior do Nordeste. Patriota e
humanista, democrata e revolucionário. Combatente pela libertação nacional e
social do Brasil e da Humanidade. Partidário do socialismo científico de Marx,
Engels e Lenin. Poeta realista, romântico e revolucionário. (Brandão,
1978, p.XXIII) [5]
A vida política desse
complexo autor começou em 1912, quando iniciou sua luta em Recife, Pernambuco,
“pela libertação espiritual do povo brasileiro, pela ciência e a cultura,
contra o atraso e o obscurantismo”. Depois de uma breve, mas importante
passagem pelas fileiras do anarquismo, uniu-se em outubro de 1922 ao
recém-criado Partido Comunista do Brasil, e, a partir daí, passou a ser, até o
fim de sua vida, um combatente pelo “socialismo científico de Marx, Engels e
Lenin”, como gostava de dizer.
Ao longo de sua vida foi
preso dezessete vezes, fugiu outras incontáveis, viveu um exílio de mais de
quinze anos antes de retornar ao Brasil. Intendente em 1928, eleito pelo Bloco
Operário e Camponês, e vereador em 1947 pelo Partido Comunista do Brasil, não
conseguiu encerrar nenhum de seus mandatos, sendo cassado mediante atos
arbitrários que interromperam rapidamente sua carreira de parlamentar
comunista. Perseguido pela polícia, impedido de trabalhar pela patronal,
marginalizado pelo partido ao qual dedicou sua vida e energia, Brandão viveu de
1946 até o final de sua vida como um exilado em seu próprio país.
Embora seja uma figura
central da história política e intelectual brasileira, sua vida ainda está em
busca de biógrafos à altura e sua obra à procura de intérpretes empenhados.[6] Mesmo na historiografia do comunismo brasileiro Brandão ainda não tem um lugar
de destaque. José Antonio Segatto (1989), por exemplo, o ignora completamente e
sequer o cita em sua Breve história do PCB, falando da dualidade da formação
social brasileira e da contradição entre o capitalismo agrário semifeudal e o
moderno capitalismo industrial sem citar o pai da tese. Raimundo Santos, em A primeira
renovação pecebista (1988) também o condena ao silêncio e, embora o livro trate
dos debates ocorridos no PCB entre 1956 e 1957, não faz referência à importante
discussão que teve lugar nas páginas do jornal Imprensa Popular, em 1956, sobre
o lugar de Brandão na história desse partido e o evidente nexo desse debate com
os acertos de contas internos depois do 20º Congresso do Partido Comunista da
União Soviética.[7]
Mais sorte teve o autor
nas obras de Gildo Marçal Brandão (1997), que lhe dedicou quatro breves menções
em A esquerda positiva, e de Marcos Del Roio (1990) sobre o desenvolvimento da
teoria da revolução brasileira pelo grupo dirigente do Partido Comunista do
Brasil, que fez referência a um conjunto importante de artigos publicados pelo
dirigente do PCB na imprensa durante os anos 1920, muito embora não cite
Agrarismo e industrialismo. A atividade de Brandão como militante anarquista e
comunista foi amplamente retratada por John W. F. Dulles (1980), que o
entrevistou e utilizou seu depoimento como uma de suas principais fontes de
informação. O papel do comunista como intelectual, por sua vez, foi valorizado
por Michel Zaidan (1989, p.17-22), que deu grande importância ao livro de
Brandão e, principalmente, à caracterização por ele feita dos levantes
militares da década de 1920.
Foi durante a década de
1920 que a atividade política de Brandão foi mais intensa e seu papel no
Partido Comunista se fez mais notável. Como dirigente político do PCB foi
responsável pela criação do jornal A Classe Operária e permaneceu na sua
direção em condições extremamente difíceis, tendo resistido grande número de
vezes ao fechamento do jornal e sua supressão pelos governos de plantão.
Brandão foi também responsável pela primeira tradução brasileira do Manifesto
do Partido Comunista. Essa tradução, feita a partir da edição francesa
supervisionada pela filha de Marx, Laura Lafargue, foi publicada originalmente
no jornal Voz Cosmopolita, editado pelos trabalhadores do ramo de hotéis,
restaurantes e cafés. No ano seguinte, saiu em Porto Alegre uma edição de 3 mil
exemplares, por iniciativa do militante judeu-argentino Samuel Speisky um dos
fundadores do Partido Comunista no Rio Grande do Sul.
Mas a obra teórica mais
notável do comunista alagoano foi Agrarismo e industrialismo, publicada com o
pseudônimo de Fritz Mayer em abril de 1926.[8] O subtítulo dessa obra já era um
verdadeiro programa de pesquisa: “ensaio marxista- leninista sobre a revolta de
São Paulo e a guerra de classes no Brasil” (Brandão, 2006). Note-se que esta é
a primeira vez que no Brasil é utilizada a expressão “marxista-leninista” e
provavelmente das primeiras vezes no mundo.[9] Também é notável a definição do
“marxismo leninista” como “o marxismo da época burguesa imperialista e
proletária revolucionária”, numa fórmula idêntica àquela avançada por Josef
Stalin a respeito do leninismo em sua conhecida conferência de 1924 na
Universidade Sverdlov.[10]
A tese principal
anunciada no livro de Brandão era a de que existiria no Brasil um conflito
entre as forças agraristas e as forças industrialistas. Mas esse antagonismo
apareceria sob formas variadas. As razões das revoltas militares de 1922 e 1924
poderiam ser encontradas, fundamentalmente, nas contradições existentes entre o
capitalismo inglês e o capitalismo norte-americano, entre fazendeiros de café e
industriais, entre os capitalistas e a pequena burguesia e entre os
capitalistas e os operários e trabalhadores do campo (Brandão, 2006, p.26). A
essas causas, consideradas “econômicas” e, portanto, graníticas,[11] Brandão
somava causas políticas – a situação revolucionária mundial, a vontade de
dominação dos grandes industriais e as reivindicações eleitorais da
pequena-burguesia – e psicológicas – “o espírito de revolta” (Brandão, 2006,
p.27-28).
Brandão não foi preciso
em sua análise da sociedade brasileira; oscilando em sua terminologia. Ora
definia a economia nacional como “agrária” e “feudal” (Brandão, 2006, p.33),
caracterizando os trabalhadores rurais como sujeitos à “servidão medieval”
(Brandão, 2006, p.34), o coronel como “novo barão feudal” (Brandão, 2006,
p.48);[12] ora apresentava definições mais nuançadas, como quando escreveu: “Eis
aí o que é o Brasil. País estapafúrdio, onde os extremos se chocam diariamente,
onde as coisas mais incríveis são realizáveis, país semicolonial, semifeudal e
semiburguês industrial” (Brandão, 2006, p.52).[13] Tais oscilações podem,
entretanto, ser decorrentes da complexidade do objeto de análise e uma
tentativa de registrá-la de forma mais adequada.
O que ficava claro,
entretanto, era que na política brasileira predominariam os agraristas –
latifundiários, cafeicultores, clericais e monarquistas – alinhados com os
financistas ingleses. Contra esses se levantariam timidamente as diferentes
frações industrialistas – industriais, pequeno-burgueses das cidades,
republicanos e militares –, algumas mais decididas do que as outras. O
proletariado deveria combater ao lado dos industrialistas contra o reacionarismo
agrarista, mas sem depositar confiança na capacidade de seus aliados
temporários levarem a luta até o final. Na rude dialética exposta por Brandão,
o agrarismo seria a tese (afirmação), o industrialismo a antítese (negação) e a
revolução proletária a síntese (negação da negação).
O folheto oscilava entre
um ensaio de interpretação e um panfleto de agitação política. Seu estilo era
direto, duro e cortante; concebido evidentemente para atingir um público amplo;
mas nem por isso deixava de ser confuso, disperso e pretensioso. Brandão
construiu seu argumento por enumeração. Ao invés de explicar suas teses
procurava elencar o maior número de fatos que as comprovariam, não se
preocupando muito seja com a relevância dos eventos apontados, seja com a
consistência dos diversos fatos que comprovariam uma tese. Ao final do livro
terminava com 36 palavras-de-ordem, das mais variadas, referentes à situação
brasileira, e 118 referentes à situação internacional.
Os limites da obra são
evidentes e não são muito diferentes daqueles específicos do marxismo
brasileiro na época: superficialidade, diletantismo e, principalmente,
desconhecimento da teoria marxista. O próprio Brandão enumerou posteriormente
aquelas que considerava serem as principais deficiências de seu livro: “Não
compreendeu claramente o caráter da revolução no Brasil. Nem suas etapas. Não
deu a devida importância aos camponeses. Exagerou o papel dos revoltosos
pequeno-burgueses” (Brandão, 1966, p.77). Mas era justamente nisso que Brandão
considerou posteriormente serem suas “falhas” que se encontravam alguns dos
méritos do livro.
Sob vários aspectos a
obra de Brandão era notável e distanciava-se das teses a respeito da história
latino-americana que começavam a ser esboçadas na Internacional Comunista (IC).
Note-se, por exemplo, que embora afirmasse o caráter feudal ou semifeudal da
formação social brasileira e a importância do conflito com o imperialismo, o
jovem comunista não propunha uma revolução democrático- -burguesa,
democrático-popular ou democrático nacional. Justamente por não “compreender”
as “etapas” da revolução no Brasil, tal qual seriam afirmadas pela IC, o autor
de Agrarismo e industrialismo podia defender, mesmo de modo confuso, uma
estratégia de revolução permanente para o Brasil quando já era clara a
condenação da mesma na União Soviética.
Essa surpreendente defesa
da revolução permanente não tem sido suficientemente destacada pelos
historiadores. Mas no texto de Brandão ela é explícita e aparece nos capítulos
finais em dois momentos nos quais a analogia com as revoluções francesa e russa
ganham destaque. Na primeira passagem, o comunista registrou:
Lutemos
por impelir a fundo a revolta pequeno-burguesa fazendo pressão sobre ela, transformando-a em revolução permanente no
sentido marxista-leninista, prolongando-a o mais possível, a fim de agitar
as camadas mais profundas das multidões proletárias e levar os revoltosos às
concessões mais amplas, criando um abismo entre eles e o passado feudal.
Empurremos a revolução da burguesia industrial – o 1789 brasileiro, o nosso 12
de março de 1917 – aos seus últimos limites, a fim de, transposta a etapa da
revolução burguesa, abrir-se a porta da revolução proletária comunista.
(Brandão, 2006, p.133; grifos meus)
A segunda passagem é
ainda mais significativa, uma vez que se insere na discussão a respeito das
perspectivas políticas em fins de 1924. O comunista via no horizonte uma
situação revolucionária e a necessidade de “uma frente única momentânea do
proletariado com a pequena burguesia e a grande burguesia industrial” para
derrubar o “fazendeiro de café” (Brandão, 2006, p.61). Não estava claramente
definido no texto a quem caberia a direção dessa “frente única momentânea”, mas
tudo leva a crer que esse papel deveria ser da pequena-burguesia:
Temos,
pois, em perspectiva, sérias batalhas de classes, isto é, uma situação revolucionária.
Se os revoltosos pequeno-burgueses souberem explorar a rivalidade imperialista
anglo-americana e a luta entre os agrários e os industriais, se procurarem uma
base de classe para a ação, se o proletariado entrar na batalha e se essas
contradições coincidirem com a luta presidencial e as complicações financeiras,
será possível o esmagamento dos agrários. (Brandão, 2006, p.149)
A afirmação do papel
dirigente da pequena-burguesia afastava as teses de Brandão daquelas que vieram
a predominar na Internacional Comunista e no PCB a respeito da burguesia
nacional. Mesmo considerando que, em comparação com os latifundiários, o
“burguês industrial não é tão reacionário” (Brandão, 2006, p.46), Brandão
identificava claramente os nexos dessa burguesia industrial com o imperialismo
norte-americano. A diferença maior, entretanto, residia no modo como o
comunista alagoano parecia perceber a articulação entre a revolução proletária
e a revolução agrária. Mais uma vez a analogia com a França e a Rússia
aparecia:
Na
Rússia, a revolução operária, das cidades, coincidiu com a revolução camponesa.
No Brasil, a revolução dos operários industriais contra o regime burguês
industrial, regime do salariado, irá coincidir com a revolução agrária, dos
trabalhadores rurais contra o regime agrário, regime feudal, regime de
servidão. Fundir os dois movimentos num só – transformar o nosso 1789 numa revolução permanente, da qual
brotará o nosso 7 de novembro de 1917 – tal deve ser uma das obras fundamentais
dos comunistas no Brasil. (Brandão, 2006, p.149-150; grifos
meus)
A coincidência das duas
revoluções – operária e agrária –, antevista pelo comunista, deixava seu
esquema menos nítido. Se a questão agrária permanecesse, a ponto de coincidir
com a solução da questão operária, qual seria o papel da revolução liderada
pela pequena-burguesia? No argumento do autor de Agrarismo e industrialismo a
revolução da pequena-burguesia parece ser apenas um momento necessário para
retirar os entraves ao livre desenvolvimento dos conflitos sociais e políticos;
a antessala imediata da “luta entre a pequena-burguesia triunfante e a
revolução proletária” (Brandão, 2006, p.150). Mas o texto não é completamente
claro a respeito e em vários momentos parece contradizer-se.
Apesar das
inconsistências presentes na obra de Brandão e de seus evidentes limites ela é
mais interessante e original do que acreditou uma crítica simplificadora. A
evolução política de seu autor, entretanto, bloqueou o desenvolvimento teórico
de algumas importantes passagens, particularmente aquelas nas quais era
anunciada a estratégia da revolução permanente. O ecletismo de suas teses, nas
quais a noção de etapa era articulada com uma estratégia aparentemente
incompatível, não encontrou solução no âmbito dos estreitos quadros teóricos da
teoria staliniana para a qual Brandão convergiu.[14]
O
militante contra o esquecimento
Mesmo quando citado pela
historiografia, Octavio Brandão aparece como um personagem da década de 1920, o
qual como outros teria transitado do anarquismo ao comunismo. O livro Agrarismo
e industrialismo foi tratado, assim, como sua única contribuição relevante, a
primeira tentativa de análise marxista da realidade brasileira; “um livro
fundador”, nas palavras de João Quartim de Moraes (2006, p.11-18). Combates e
batalhas, cuja narrativa se encerra em 1931, por sua vez, tornou-se uma fonte
indispensável; “um monumental documento histórico”, segundo Paulo Sérgio
Pinheiro (1978, p.XVII). O restante da vasta produção bibliográfica do
comunista foi, entretanto, amplamente ignorada e o resultado é um retrato muito
parcial de sua vida e realizações, quando não do próprio movimento operário
brasileiro.
Há ainda muito a
descobrir na documentação de Octavio Brandão. A complexidade dessa notável
figura e a diversidade de seus interesses tornarão difícil a missão desses
biógrafos e intérpretes. Marcado pela tragédias do século XX, Brandão nem
sempre foi consciente delas.[15] Mas elas emergem de modo incontornável em cada
momento de sua vida devido a seu empenho em registrar cotidianamente suas
atividades, colecionar documentos, escrever suas recordações, juntar poemas,
coletar informações, anotar eventos e salvar a memória de seus combates. Sua
filha Dionysa Brandão Rocha narrou assim essa atividade de memorialista de si e
de uma época:
Octavio
Brandão guardava com zelo e carinho seu passado de poeta naturalista,
libertário, anarquista e comunista […]. Vivendo várias décadas na
clandestinidade e quinze anos de exílio, tendo atravessado uma guerra (1941 a
1945), conseguiu manter inúmeras anotações, trabalhos inéditos, poesias, em
resumo, as seis coleções, guardadas até em sacolas de compras e espalhadas em
casa de amigos e vizinhos. (Rocha, 2005, p.54)
Essa obcecada atividade
de colecionador e memorialista foi cortada pelos perigos da própria vida.
Preservar seus textos foi para Brandão tão perigoso quanto viver e tão difícil
quanto escrever. Perseguido pela polícia e tendo que mudar de residência
constantemente, o militante comunista empenhou-se em impedir que as condições
adversas que enfrentava apagassem os registros de sua existência e de sua obra.
Em um pequeno documento de três páginas datilografadas em 1942, é possível ler
o pequeno inventário que fez a respeito dos riscos dessa atividade: “Em nossa
vida, além de toda uma série de pequenos autos de fé, houve três grandes
destruições de nossos materiais” (Brandão, 1942, p.1).
A primeira dessas perdas
ocorreu em 1923-1924 e é reveladora das condições de vida de Brandão.
Incessantemente caçado pela polícia, o jovem comunista procurava ocultar os
materiais por ele produzidos ou coletados de modo a salvá-los da sanha de seus
perseguidores. Em uma dessas ocasiões pôs sua coleção em uma maleta e a
enterrou nos fundos de um casebre localizado em um subúrbio do Rio de Janeiro.
O que a polícia não conseguiu fazer ficou a cargo da natureza. As condições nas
quais a clandestina maleta foi escondida eram precárias e o “cupim e a umidade
destruíram a quase totalidade dos materiais” (Brandão, 1942, p.1).
Na segunda ocasião a
polícia foi não apenas o motivo como também o agente da destruição. Depois de
insistente procura, em julho de 1930 os gendarmes foram bem-sucedidos e
confiscaram uma mala cheia de documentos de Brandão em uma casa localizada em
Águas Férreas, novamente no Rio de Janeiro. Uma pequena parte desses documentos
foi devolvida a Octavio Brandão e sua esposa, a poetisa Laura Brandão, mas a
maior parte deles ficou apreendida. O que restou em poder de seus perseguidores
pode ter sido definitivamente perdido, segundo a hipótese do autor do
documento: “Por ocasião do movimento popular de outubro de 1930, a multidão
invadiu a sede da polícia, devastou-a, lançou na rua e destruiu uma quantidade
colossal de materiais aí encontrados. Entre estes materiais estariam os de
Laura e Octavio?” (Brandão, 1942, p.1).
Essas duas primeiras
perdas registradas ocorreram, assim, durante o período no qual Brandão foi mais
ativo politicamente, ocupando posições de responsabilidade na direção do PCB,
na organização sindical – principalmente na cidade do Rio de Janeiro – e como
intendente. A narrativa de Combates e batalhas não deixa lugar a dúvidas a
respeito da importância de Brandão nessas primeiras décadas do século XX. A
destruição desses documentos tem, portanto, um valor incomensurável. A última
perda registrada no inventário de 1942 ocorreu em outubro ou novembro de 1941,
no exílio e em condições muito diferentes.
Desde o final dos anos
1920 Brandão enfrentava em sua luta pela memória não apenas a polícia como
também seus companheiros de partido. O líder comunista foi preso em 1º de março
de 1930 pelo governo de Washington Luís, quando voltava de Buenos Aires. Em
1930, foi “solto pela multidão a 24 de outubro”, mas preso novamente no dia
seguinte, “depois da ‘vitória’ da pretensa ‘revolução’” que levou Getúlio
Vargas ao poder. Foi posto em liberdade em 7 de fevereiro de 1931 apenas para
ser delatado e preso novamente em abril de 1931. Ficou 56 dias na cadeia até ser
deportado juntamente com sua esposa e três filhas, Dionysa, Vólia e Satva; a
mais velha, com apenas nove anos de idade (Brandão, 2005, p.98-99). Depois de
desembarcar em Bremen, a família Brandão se hospedou na casa do cônsul
brasileiro Josias Leão, e, a seguir, procurou fixar residência em Berlim. Tendo
recebido ordens para deixar a Alemanha, Brandão refugiou-se com sua família na
União Soviética.
Segundo relata, em seu
novo lar, os “trabalhadores da União Soviética fraternalmente abriram as portas
à família de exilados brasileiros. Deram-lhes o pão, o teto e a possibilidade
de continuar a luta pela libertação nacional e social do Brasil e da
Humanidade” (Brandão, 2005, p.99). A situação real foi, entretanto, muito
diferente. A família Brandão era formada então por seis pessoas. Sua filha
Valná descreve o quarto do velho Hotel Lux onde todos ficavam alojados como
“tão ordinário […] que a primeira coisa que me lembro na vida é um buraco no
teto e a água pingando de cima numa bacia”. O teto que a família Brandão
recebera dos “trabalhadores da União Soviética” tinha uma goteira.
Em 1941, a família
Brandão recebeu a ordem de evacuação. Moscou estava em perigo, acossada pelo
exército nazista e a Internacional Comunista, onde ele trabalhava, mudou seus
escritórios. O destino foi a cidade de Ufá, nos Urais. Foi então que pela
terceira vez os papéis de Octavio Brandão se perderam. Após sua saída de Moscou
teve início a destruição pelo Exército Vermelho de tudo o que pudesse
comprometer a resistência ao nazismo ou beneficiar o invasor. Segundo Brandão,
“durante nossa ausência [os documentos que ficaram no apartamento] foram
queimados” (Brandão, 1942, p.2).
Após uma breve descrição
das condições nas quais ocorrera cada uma das destruições, apreensões ou perdas
de materiais, Brandão acrescentava uma lista daquilo que havia se perdido. Em
1941 as perdas foram bem maiores e originais de livros e artigos nunca
publicados podem ter sido definitivamente levados pelo fogo.[16] Poucos meses
depois falecia sua querida esposa Laura. As perdas atingiam a vida e o ascético
espírito do comunista, já em sua meia-idade, sentiu o duro golpe. Escrevendo
anos mais tarde a respeito, relatou:
Durante
a ausência nos Urais, inúmeros materiais foram retirados do Hotel Lux e
queimados em Moscou. Deste modo, na voragem da guerra, perdi as relíquias mais
preciosas: as cartas e poesias de Laura. Perdi-a, pois, duas vezes. Perdi também
os frutos de dez anos de trabalho tenso e intenso: obras inéditas, artigos,
estudos, cadernos de apontamentos – queimados durante a evacuação dos Urais ou
incendiados pelas bombas dos aviões nazistas. Perdas terríveis, definitivas,
irreparáveis. (Brandão, 1970, p.124)
O inventário de 1942
registra 49 conjuntos documentais aparentemente destruídos no ano anterior. Os
mais sentidos foram aqueles produzidos por Laura, ao lado dos quais escreveu:
“Perda terrível, irreparável!” (Brandão, 1942, p.2-3). É possível, entretanto,
que outras perdas tenham acontecido e não tenham sido registradas por Brandão.
É o que pode se inferir de uma nota a caneta inserida no original datilografado
de A luta libertadora, de março de 1970. Nela o autor descreve uma perda anterior
a 1942 que não havia sido registrada no inventário deste ano: “Ao partir para a
Europa, em 1931, deixei com o pai de Laura dois caixões, cheios de livros,
jornais etc. Ao voltar em 1946 procurei-os por toda parte. Nem a mais vaga
notícia” (Brandão, 1970). Desse conjunto documental Brandão não deu outras
informações.
Também podem ter ocorrido
perdas a partir de 1964. Após o golpe civil- -militar de 1º de abril desse ano,
Brandão ficou muito receoso de que seus escritos e materiais de pesquisa fossem
novamente confiscados e procurou escondê-los. Sabe-se que seu amigo Antonio de
Medeiros Gualter (1891-1966) recebeu parte dessa documentação com a missão de
escondê-la. Segundo a bisneta de Gualter, a historiadora Simone Kropf (2004),
“por ocasião do golpe de [19]64, Brandão ficou preocupado com possíveis buscas
em sua casa e pediu a meu bisavô para guardar esses documentos com ele. E então
eles ficaram no sótão da casa por muito tempo e depois passaram a ficar sob a
guarda de minha avó. Seu nome é Maykra Gualter Kropf”. Graças aos esforços da
família Gualter Kropf esses documentos foram preservados. Mas Antonio teria
sido o único a esconder o material de Brandão ou esse último apelou a outros
amigos ainda desconhecidos?
O
profeta banido
Os golpes contra sua memória mais sentidos por
Brandão vieram de seus próprios companheiros. Com sua chegada à União Soviética
teve início o que Valná Brandão chamou de período de discriminação e
ostracismo. Em “abril de 1932 já voava aos ‘camaradas da Seção Latino-Americana
da Internacional Comunista’ a denúncia de que Octavio Brandão, supostamente,
tivera ligações com Josias Leão, ‘um dos piores inimigos, um traidor do
proletariado...’, denúncia, ia dizendo, enviada do Brasil para a URSS e
assinada por um tal ‘Bernardo’” (Tchudínova, 2005, p.45-46). Essas “ligações
com Josias Leão” podem ter sido, entretanto, apenas o pretexto. Desde o final
dos anos 1920, o incansável comunista se encontrava em rota de colisão com o
grupo dirigente do PCB e com a tradução que este fazia da linha do terceiro
período aprovada no 9º Plenum do Comitê Executivo da Internacional Comunista,
em fevereiro de 1928.[17]
Octavio Brandão e camaradas da Internacional Comunista na URSS.
Os choques se fizeram mais evidentes na Conferência dos Partidos Comunistas realizada em Buenos Aires em junho de 1929. Nela, Brandão recebeu o que chamou de “um golpe terrível” (Brandão, 1978, p.379). Tendo se oposto ao que considerava a “absurda Revolução Soviética imediata para o Brasil da época”, o comunista ficou sob o fogo cerrado de seus companheiros: “Ouvi dezesseis discursos de ataques, inclusive pessoais. Procuraram fazer tábua rasa de minha vida, obra e luta”. Isolado e atacado, Brandão se viu obrigado a “aceitar e defender a linha da Revolução Soviética imediata, por disciplina, para não ser expulso do PCB como ‘traidor’ e porque ela foi preconizada em nome da Internacional Comunista” (Brandão, 1978, p.379-380).[18]
Voltando ao Brasil após
sua viagem a Buenos Aires, Brandão foi demitido da direção do partido “por
proposta de Astrojildo e por ordem superior”, conforme afirmou (Brandão, 1978,
p.380). Também foram afastados da direção o médico Leôncio Basbaum, antigo
encarregado da juventude comunista, o metalúrgico José Cosini e o gráfico
Ferreira da Silva. O próprio Astrojildo Pereira seria destituído da secretaria
geral do partido. A principal acusação que recaiu sobre a primeira geração de
comunistas brasileiros era a de não pertencerem a classe operária e serem
“intelectuais”. Ao final de 1930 quase todos os fundadores do PCB
encontravam-se fora dele, um grande número devido a expulsões (Rodrigues, 1996,
p.377). Apesar das condições precárias e de seu alijamento político, continuou
um militante ativo, mesmo no exílio, trabalhando primeiro nos escritórios da
Internacional Comunista e depois escrevendo e traduzindo programas para a Rádio
de Moscou (Brandão, 1978, p.102).[19]
A dissolução da antiga
direção marca um período de grande instabilidade no grupo dirigente comunista.
Entre 1930 e 1940, onze diferentes pessoas ocuparam o posto de secretário-geral
do partido, segundo Leôncio Martins Rodrigues (1996, p.378). O grande número de
prisões, particularmente após o levante comunista de 1935, contribuiu para essa
instabilidade. Os dirigentes presos eram muitas vezes substituídos rapidamente,
cedendo lugar a novos e inexperientes militantes. Mas os acertos de conta
internos e os expurgos também foram responsáveis pelas sucessivas mudanças na
cúpula do Partido.[20]
Um novo giro, oposto à
proletarização, ocorreu a partir de 1934 e contribuiu para mudar
definitivamente a cara do PCB. Depois de ter marchado à frente de um exército
de militares revoltosos que por mais de dois anos enfrentou as forças armadas
regulares e percorreu 25 mil quilômetros, Luiz Carlos Prestes partiu para o
exílio. Brandão havia sido favorável ao apoio do PCB à chamada Coluna
Prestes-Miguel Costa, mas a maioria do partido resistiu a essa ideia. No
exílio, Prestes revisou algumas de suas posições políticas e iniciou uma
aproximação com a Internacional Comunista, por intermédio do secretário-geral
do Partido Comunista Argentino, Rodolfo Ghioldi, e do chefe do Secretariado
Latino-Americano da Internacional Comunista, Abraham Guralski. A direção do
PCB, entretanto, primeiro com Astrojildo Pereira e, depois, com seus
sucessores, manteve suas reservas para com Prestes. Em 1931 o jovem capitão
exilou-se na União Soviética, a convite do governo desse país, e, em 1934,
mediante a pressão da Internacional Comunista, Prestes foi aceito nas fileiras
do PCB.
Junto com o capitão
afluíram muitos militares que gradativamente ocuparam as posições dirigentes do
partido. O primeiro deles foi Antonio Maciel Bonfim, conhecido como Miranda,
ex-sargento, nascido na Bahia e eleito para a secretaria geral do partido em
1934.[21] Entre 1935 e 1943, anos de grande repressão, a maior parte das direções
nacionais e regionais foram aprisionadas. Novos militantes, cada vez mais ex-oficiais
e suboficiais do exército, assumiram funções dirigentes. A anistia de 1945
colocou os comunistas em liberdade, mas os antigos quadros civis não
recuperaram suas posições. Nesse ano, o próprio Prestes assumiu a secretaria
geral e consolidou a posição dos militares no partido.[22] O partido deixou de
ser operário e comunista e passou, cada vez mais, a assumir uma feição
pequeno-burguesa e patriótico-nacionalista. A nacionalização do marxismo
brasileiro foi importante para o crescimento e expansão do PCB, mas acabou por
descaracterizá-lo.
A ascensão dos militares
ao comando do partido eclipsou definitivamente Brandão. Tendo sido um dos
primeiros críticos do chamado Terceiro Período e do levante militar de 1935 não
seria perdoado por aqueles que estiveram à frente dessa operação.
Paradoxalmente, os pressupostos teóricos do giro patriótico-nacionalista dos
comunistas poderiam encontrar amparo em algumas teses da pioneira análise de
Brandão sobre a formação social brasileira. O PCB “nacionalizado” considerava,
assim, como Brandão, que o conflito entre o imperialismo inglês e o norte-
-americano, por um lado, e a existência de um latifúndio de tipo feudal, por
outro, caracterizavam a formação social brasileira. Levando às últimas
consequências essa análise, o partido imprimiu a seu programa um conteúdo
nacional-popular.
Mas Brandão mostrou-se
fortemente crítico a essa linha política. Assim, em Análise, manuscrito inédito
datado de 1966 e dedicado à história do PCB, expôs uma notável caracterização
desse partido, a qual apresenta uma grande coincidência com as acusações que as
esquerdas dissidentes dirigiram contemporaneamente a seu grupo dirigente.
Segundo o comunista, já com 70 anos:
Desnaturado
pelo nacionalismo burguês e nacional-reformismo, o PCB virou “nacionalista” nos
últimos anos. Desfraldou essa bandeira que se presta a todas as confusões. Deu
o título de “nacionalista” a um bando de agentes dos latifundiários e da grande
burguesia, a fim de ter o pretexto de apoiá-los nas eleições. Marchou a reboque
da chamada “burguesia nacional-progressista” com os Brizola. Foi arrastado à
aventura de 1963-1964, a serviço do governo João Goulart. Pregou a necessidade
de um governo “nacionalista”. (Brandão, 1966, p.24)
Essa adesão do partido ao
nacionalismo explicava-se pela forte presença em suas fileiras e em seus
quadros dirigentes de militantes provenientes das forças armadas e da
pequena-burguesia urbana. Sem nunca ter se enraizado profundamente na classe
operária o PCB tornou-se vulnerável e sofreu, sem muita resistência, os efeitos
de uma rápida transformação de sua base social. Segundo o comunista: “O atual
Partido Comunista do Brasil é um partido da pequena-burguesia urbana em tudo e
por tudo: pela ideologia e linha política, pela composição de classe e métodos,
pela direção e base” (Brandão, 1966, p.8).[23]
Embora a historiografia
oficial do PCB tenha desvalorizado a figura de Octavio Brandão e justificado
seu afastamento do Partido como um efeito de sua complexa personalidade, os
documentos que ele deixou permitem apresentar a hipótese de que esse
afastamento tinha fortes razões políticas. Não era apenas à direção
pequeno-burguesa do Partido que o velho comunista se opunha. Sua contestação
era contra, principalmente, a política dessa direção e, particularmente, a
aproximação dessa última ao nacionalismo burguês. Mas a crítica de Brandão
carecia de uma consistência capaz de atrair alguma das diversas dissidências
comunistas que surgiram na década de 1960.
Embora crítico da direção
do PCB e de sua política o militante alagoano permaneceu ainda nos marcos
teóricos e políticos dessa organização. Sua oposição ficou, assim, no meio do
caminho e tornou-se incapaz de arregimentar os jovens que desejavam uma ruptura
radical com o velho PCB. É possível supor que Brandão sequer quisesse estimular
essa ruptura e que não desejasse, senão, recuperar seu lugar no partido, ou
pelo menos na sua memória. Sua última intervenção na política interna dos
comunistas, registrada nas páginas do jornal Imprensa Popular, dá consistência
a esta hipótese (Brandão, 1956). Seu objetivo nela era exigir uma política para
os velhos quadros da organização, dentre os quais ele próprio. Essa intervenção
fracassou e Octavio Brandão recebeu dura oposição nas páginas do mesmo jornal,
episódio que iria afastá-lo de modo quase definitivo do partido.
Reconhecer a derrota
política de Brandão e suas razões é importante, mas é igualmente importante
recuperar seu contraditório papel na história do comunismo brasileiro. O que a
historiografia comunista fez até o momento foi banir esse incômodo personagem à
margem da história. Reencontrar seu lugar é fundamental para uma renovação
crítica dos estudos sobre o movimento operário.
*Este ensaio foi orginalmente
publicado em Crítica Marxista, nº 34, 2012.
**Professor livre-docente; diretor do Instituto de Filosofia em Ciências Humanas da Unicamp; Membro do Comitê de Coordenação da International Gramsci Society, do corpo editorial dos periódicos Outubro e International Gramsci Journal e do Comitê Científico das coleções Marx 21 (editora da Unicamp) e Per Gramsci (International Gramsci Society e Centro interuniversitario di ricerca per gli studi gramsciani). Atua na área de Ciência Política, com ênfase na história do pensamento político italiano e brasileiro e história da Ciência Política. Foi diretor do Arquivo Edgard Leuenroth (2009-2017).
Notas:
1 Grafa-se aqui o nome de Octavio
Brandão tal qual ele mesmo o fazia, sem acento. Escritor compulsivo, Brandão
deixou uma quantidade enorme de documentos, textos, anotações e livros que,
graças a ação de seus familiares, encontram-se hoje a salvo no Arquivo Edgard
Leuenroth – Centro de Pesquisa e Documentação Social do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Unicamp. Ao todo encontram-se guardados e acessíveis à
consulta 5.463 documentos textuais, 1.422 livros, 744 fotografias, 218
documentos iconográficos, 165 folhetos, 77 mapas, 54 títulos de periódicos, 7
objetos tridimensionais e 3 cartazes.
2 Constrangido com o episódio,
Jaime Cubero escreve a respeito de um suposto Partido Comunista Libertário. Os
documentos, entretanto, não fazem referência a um partido com esse nome. Cubero
também afirma que Oiticica teria publicado uma versão definitiva das bases para
a criação de tal partido, o qual seria um “catecismo comunista” (Cubero, 1997,
p.32). As afirmações de Pereira (1976) e Cubero (1997) a respeito do episódio
são imprecisas. Oiticica (1919, p.1) é claro ao dizer que seu texto publicado
em Spartacus não havia sido discutido pelo Congresso, do qual ele não pôde
participar no segundo dia, e que era apenas um esboço de um “catecismo
anarquista”.
3 “No dia 15 do corrente mês de
Abril os autores deste opúsculo tinham combinado de fazer um trabalho tão
completo quanto lhes fosse possível sobre as doutrinas socialistas libertárias,
destinando esse trabalho aos trabalhadores brasileiros. Mas poucos dias depois,
diversos companheiros demonstraram-nos a conveniência de ser esta publicação
posta à venda antes de 1o de Maio” (Negro; Leuenroth, 1919, p.3).
4 O relatório do delegado
brasileiro ao 3o Congresso da Internacional Comunista (IC) revela a original confusão
promovida por esses jovens militantes entre essas diferentes perspectivas
políticas e ideológicas. Questionado por um jornal russo a respeito da
maçonaria, o delegado Antonio Canellas respondeu: “Considerando que a Maçonaria
de rito escocez, como as demais seitas religiosas, é negócio privado, de ordem
moral, o nosso Partido, que conta, entre os seus aderentes alguns bons
camaradas maçons cuja ação revolucionária no seio de sua seita é notável e
notória, decerto não julgará de grande urgência uma campanha contra a
maçonaria” (Relatório Canellas, 1982, p.32). Zaidan Filho (1989) destaca esse
vínculo com a maçonaria e o positivismo, enquanto Marçal Brandão (1997) tenta
minimizá-lo, contrariando as fortes evidências presentes no relatório Canellas.
O estudo biográfico de Everardo Dias – primeiro, anarquista, livre-pensador e
maçom, e, depois, comunista e maçom – realizado por Marcelo Ridenti (2010)
reforça a tese de Zaidan Filho.
5 Em texto de 1956 dizia “estar
sempre lutando, como um caboclo do Nordeste” (Brandão, 1956, p.3).
6 Os estudos monográficos são raríssimos e por
isso merecem destaque Amaral (2003) e Plancherel (1997).
7 Sobre o debate a respeito da
memória de Brandão aberto pelo seu artigo “A política de quadros”, publicado no
jornal Imprensa Popular dos dias 26 e 27 de outubro de 1956, ver Amaral (2003,
p.278-284).
8 Para a datação da composição da
obra, ver João Quartim de Moraes (2006, p.12; 2007, p.141-142).
9 Aqui é necessário fazer pequenas correções
ao que diz Quartim de Moraes (2007, p.41-43). Apoiando-se na enciclopédia
Marxism, Communism and Western Societies, tal autor afirma que coube a Deborin
utilizar pela primeira vez a fórmula “marxismo-leninismo” em março de 1928, e
que Stalin só a teria utilizado no final dos anos 1930, em sua contribuição à
História do Partido Comunista da União Soviética. A expressão aparece,
entretanto, já em abril de 1927, nas teses sobre a revolução chinesa redigidas
por Gregory Zinoviev (1932). Stalin, por sua vez, a utiliza em novembro de 1928
(1954, p.291).
10 Segundo Stalin: “O que é,
então, em última análise o leninismo? Leninismo é o marxismo da era do
imperialismo e da revolução proletária” (1953, p.73). A coincidência entre as
formulações de Stalin e Brandão dá grande força à hipótese, apresentada por
João Quartim de Moraes (2007, p.139-143), de que o comunista alagoano teria
tido conhecimento direto ou indireto de alguns textos do secretário-geral
durante a redação de Agrarismo e industrialismo.
11 Segundo Brandão: “A Economia é
em Sociologia o que o granito é em geologia” (2006, p.37).
12 Para o comunista, “o Brasil
ainda é, no conjunto, um país medieval, atrasado, sob este ponto de vista,
cinco séculos no mínimo” (Brandão, 2006, p.48).
13 Note-se que, na primeira
edição do livro, Brandão, nessa passagem, escreveu apenas “feudal”, ao invés de
“semifeudal”.
14 Sobre a convergência teórica
de Brandão e a teoria staliniana, ver Quartim de Moraes (2007, p.143-144).
15 É notável, por exemplo, sua demora
em perceber o significado do stalinismo. Em A luta libertadora – livro
finalizado em março de 1970 –, entretanto, traçou um retrato pungente das
perseguições às quais foram submetidos os comunistas estrangeiros radicados em
Moscou. Segundo narrou, escapou da morte nas mãos da polícia política
stalinista por pouco. Ver Brandão (1970).
16 É possível, também, que
inventariando apenas um ano depois as perdas, Brandão tivesse maiores
informações do que dispunha com relação às anteriores. Afirma-se a hipótese de
que esses materiais foram queimados seguindo o relato do autor; mas não pode
ser liminarmente descartada a hipótese contrária, a de que esses materiais tenham
sido sequestrados e preservados a salvo em arquivos soviéticos. Não seria a
primeira vez que isso teria acontecido.
17 O 9o Plenum caracterizou a
existência de um terceiro período de crise do capitalismo, o qual deveria
conduzir a morte final desse modo de exploração. Estaria assim aberto o período
para um decisivo e imediato levante das massas trabalhadoras em todo o mundo, para
o qual as seções da Internacional deveriam estar preparadas. Ver a respeito
Broué (1997).
18 Brandão tornou públicos esses
episódios em 1956, nas páginas do jornal Imprensa Popular.
19 O período é largamente
descrito por Brandão em texto ainda não publicado: Brandão (1970).
20 É de 1937, por exemplo, a
expulsão do secretário-geral do Partido em São Paulo, Herminio Sacchetta,
acusado de trotskismo.
21 Vários comunistas e ex-comunistas
afirmaram em textos autobiográficos que Miranda era um agente da polícia antes
de sua prisão em 1940 ou que teria colaborado com seus algozes depois da prisão
(Rodrigues, 1996, p.379-380).
22 Prestes permaneceu no cargo
até 1980. Seus sucessores, Giocondo Dias e Salomão Malina, também haviam sido
militares.
23 Repare-se que apesar da
agremiação ter assumido o nome de Partido Comunista Brasileiro em 1960,
Brandão, em 1966, continuava a chamá-la pelo nome de sua fundação.
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