Octavio Brandão 1977

domingo, 13 de setembro de 2020

Octavio Brandão e o Confisco da Memória*

 Nota à margem da história do comunismo brasileiro

Alvaro Bianchi **

A acidentada vida do militante comunista Octavio Brandão (1896-1980) confunde-se com a história do comunismo brasileiro. Primeiro católico, depois pensador materialista, anarquista e, por fim, comunista, Brandão viveu intensamente o próprio desenvolvimento cultural e político do país. Não é uma trajetória única. Outros, como Astrojildo Pereira e Everardo Dias, seguiram caminhos similares até se encontrarem no Partido Comunista do Brasil em 1922 e depois. [1]


Alvaro Bianchi

A trajetória política de Brandão tem início na década de 1910, quando predominavam as correntes anarquistas no interior do movimento operário brasileiro. Anarco-comunistas, anarco-sindicalistas e sindicalistas revolucionários eram ativos desde o final do século XIX. Tais correntes contribuíram de modo decisivo para a formação de um nascente movimento sindical e para a organização e educação dos trabalhadores brasileiros. Parte importante dessa atividade coube a migrantes italianos, portugueses e espanhóis, que trouxeram em sua bagagem não apenas livros e jornais anarquistas, como também uma sólida experiência militante.

O apogeu desse movimento pode ser localizado na greve geral de 1917, em São Paulo, quando os anarquistas se destacaram. Nessa ocasião, a tenacidade e a coragem de pessoas como o jovem espanhol José Martinez, assassinado em frente à fábrica Mariângela, em São Paulo, e os jornalistas Edgard Leuenroth e José Oiticica, fizeram com que o anarquismo fosse inscrito na história e na memória do movimento operário brasileiro. No mesmo ano em que uma greve geral paralisava a principal cidade industrial do país, uma revolução sacudiu a Rússia, derrubou o czar em fevereiro e proclamou a República dos Sovietes em outubro. O jovem movimento operário brasileiro recebeu a notícia com entusiasmo e não foram poucos os que consideram tratar-se de uma revolução anarquista e que pensaram ser Vladimir Lenin um “marxista-bakuninista”. Nas páginas dos jornais ácratas, A Plebe dentre eles, Brandão registrou seu apoio à Revolução Russa.

   Mas os anarquistas foram além do simples apoio. Segundo Astrojildo Pereira, influenciados por essa revolução, fundaram um Partido Comunista do Brasil, cujo programa teria sido redigido por José Oiticica – Princípios e fins (1919) – e desenvolvido posteriormente por Hélio Negro e Edgard Leuenroth – O que é o maximismo ou bolchevismo (1919).[2] O programa elaborado por Oiticica era extremamente genérico, procurando afirmar aqueles que seriam os princípios do comunismo. Escrito sob a forma de manifesto, em um tom literário, não se distinguia do programa anarquista, seja na recusa à participação eleitoral como na negação do Estado. Nada era dito nele a respeito da Revolução Russa.

Negro e Leuenroth, por sua vez, escreveram seu texto antes do 1º de maio de 1919, como deixam claramente a entender na apresentação, e preferem referir-se a uma Aliança Comunista e não a um partido.[3] Tal opúsculo fornece pistas mais interessantes para entender o contexto intelectual e político da época. Nele seus autores afirmavam que o “maximismo” dizia respeito à posição majoritária obtida pela fração de Lenin no Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo de 1903, contra os minimistas ou mencheviques.

Apresentando de modo detalhado o programa dos autodenominados “maximistas” e engalfinhando-se com os conservadores da época, o “programa comunista” apresenta as razões do apoio dos anarquistas brasileiros ao novo regime soviético. Segundo seus autores: “O regime vigente na Rússia é uma organização de defesa e reconstrução, a caminho do almejado comunismo libertário, que trará para todos a paz, o bem-estar e a liberdade” (Negro; Leuenroth, 1919, p.8). Assim, embora Negro e Leuenroth declarassem que o comunismo aboliria todos os “cargos governativos, legislativos, municipais, judiciários, militares, religiosos” não consideravam que isso fosse contraditório com um regime político transitório como o existente na Rússia – “a caminho do almejado comunismo libertário” – cuja função seria defender e reconstruir a sociedade russa em novos moldes (Negro; Leuenroth, 1919, p.73).

 

O jornal dirigido por Leuenroth, A Plebe, noticiou a fundação do novo partido e Astrojildo Pereira, um de seus fundadores, relatou os atos organizados pela agremiação por ocasião do aniversário da Comuna de Paris, da Abolição da Escravidão no Brasil e da Tomada da Bastilha (Pereira, 1976, p.62). O Partido Comunista criado em 1919 teve, entretanto, vida curta e são poucas as referências a seu respeito. Dissolveu-se à medida em que as notícias da Revolução Russa chegavam e ficava clara a distância existente entre os bolcheviques e os anarquistas. Não perdeu força, entretanto, a ideia de criação de um partido comunista no Brasil, o que de fato viria a ocorrer poucos anos mais tarde.

A fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), Seção Brasileira da Internacional Comunista, em março de 1922, contou com a presença de antigos militantes anarquistas finalmente convertidos às ideias do bolchevismo russo. A forte herança do anarquismo coexistia nos novos comunistas com um pesado legado positivista e com uma persistente fé maçônica. Embora a bibliografia existente reconheça a influência do pensamento ácrata entre os fundadores do PCB, é necessário destacar a combinação dessa com as ideias de Auguste Comte e Herbert Spencer, por um lado, e, por outro, seu vínculo com a maçonaria.[4]

Foram assim libertários, em sua maioria, e maçons, alguns, os criadores do PCB. Ao todo, nove delegados estiveram presentes no Congresso de Fundação, representando 73 militantes inscritos em diversos grupos comunistas regionais (Pereira, 1976, p.66). Com a exceção de Manoel Cendón, espanhol que havia vivido na Argentina e sido influenciado pelo socialismo de Juan B. Justo, os demais delegados provinham das fileiras do anarquismo (Brandão, 1978, p.22; Rodrigues, 1996, p.364). Poucos meses depois, em outubro de 1922, Brandão, também oriundo do movimento ácrata se somaria ao PCB.

“A vida é uma batalha”

Octavio Brandão nasceu em Viçosa, interior de Alagoas, no ano de 1896, e morreu no Rio de Janeiro em 1980. Não passou incólume nem passivamente pelo seu tempo e nem pretendeu fazê-lo. Interpretou sua própria vida como uma sucessão de combates e batalhas: “Na vida tive de travar combates e batalhas sempre desiguais. Uns terminaram em vitórias e outros em derrotas”, escreveu em sua autobiografia, na qual predomina o amargo gosto das derrotas. É evidente a tentativa de Brandão de fundir sua existência com a história e fazer das duas uma coisa só. Esse empenho aparece claramente em uma grande quantidade de escritos autobiográficos reunidos e preservados no Arquivo Edgard Leuenroth, nos quais Brandão se mimetiza nessa realidade histórico-cultural chamada Brasil. No final de sua vida insistentemente se refere a si próprio como um caboclo em um país de mestiços, uma figura que parece saída das páginas de Euclides da Cunha, um de seus escritores favoritos:

Sou escritor brasileiro. Índio caboclo do interior do Nordeste. Patriota e humanista, democrata e revolucionário. Combatente pela libertação nacional e social do Brasil e da Humanidade. Partidário do socialismo científico de Marx, Engels e Lenin. Poeta realista, romântico e revolucionário. (Brandão, 1978, p.XXIII) [5]

A vida política desse complexo autor começou em 1912, quando iniciou sua luta em Recife, Pernambuco, “pela libertação espiritual do povo brasileiro, pela ciência e a cultura, contra o atraso e o obscurantismo”. Depois de uma breve, mas importante passagem pelas fileiras do anarquismo, uniu-se em outubro de 1922 ao recém-criado Partido Comunista do Brasil, e, a partir daí, passou a ser, até o fim de sua vida, um combatente pelo “socialismo científico de Marx, Engels e Lenin”, como gostava de dizer.

Ao longo de sua vida foi preso dezessete vezes, fugiu outras incontáveis, viveu um exílio de mais de quinze anos antes de retornar ao Brasil. Intendente em 1928, eleito pelo Bloco Operário e Camponês, e vereador em 1947 pelo Partido Comunista do Brasil, não conseguiu encerrar nenhum de seus mandatos, sendo cassado mediante atos arbitrários que interromperam rapidamente sua carreira de parlamentar comunista. Perseguido pela polícia, impedido de trabalhar pela patronal, marginalizado pelo partido ao qual dedicou sua vida e energia, Brandão viveu de 1946 até o final de sua vida como um exilado em seu próprio país.

Embora seja uma figura central da história política e intelectual brasileira, sua vida ainda está em busca de biógrafos à altura e sua obra à procura de intérpretes empenhados.[6] Mesmo na historiografia do comunismo brasileiro Brandão ainda não tem um lugar de destaque. José Antonio Segatto (1989), por exemplo, o ignora completamente e sequer o cita em sua Breve história do PCB, falando da dualidade da formação social brasileira e da contradição entre o capitalismo agrário semifeudal e o moderno capitalismo industrial sem citar o pai da tese. Raimundo Santos, em A primeira renovação pecebista (1988) também o condena ao silêncio e, embora o livro trate dos debates ocorridos no PCB entre 1956 e 1957, não faz referência à importante discussão que teve lugar nas páginas do jornal Imprensa Popular, em 1956, sobre o lugar de Brandão na história desse partido e o evidente nexo desse debate com os acertos de contas internos depois do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética.[7]

Mais sorte teve o autor nas obras de Gildo Marçal Brandão (1997), que lhe dedicou quatro breves menções em A esquerda positiva, e de Marcos Del Roio (1990) sobre o desenvolvimento da teoria da revolução brasileira pelo grupo dirigente do Partido Comunista do Brasil, que fez referência a um conjunto importante de artigos publicados pelo dirigente do PCB na imprensa durante os anos 1920, muito embora não cite Agrarismo e industrialismo. A atividade de Brandão como militante anarquista e comunista foi amplamente retratada por John W. F. Dulles (1980), que o entrevistou e utilizou seu depoimento como uma de suas principais fontes de informação. O papel do comunista como intelectual, por sua vez, foi valorizado por Michel Zaidan (1989, p.17-22), que deu grande importância ao livro de Brandão e, principalmente, à caracterização por ele feita dos levantes militares da década de 1920.

Foi durante a década de 1920 que a atividade política de Brandão foi mais intensa e seu papel no Partido Comunista se fez mais notável. Como dirigente político do PCB foi responsável pela criação do jornal A Classe Operária e permaneceu na sua direção em condições extremamente difíceis, tendo resistido grande número de vezes ao fechamento do jornal e sua supressão pelos governos de plantão. Brandão foi também responsável pela primeira tradução brasileira do Manifesto do Partido Comunista. Essa tradução, feita a partir da edição francesa supervisionada pela filha de Marx, Laura Lafargue, foi publicada originalmente no jornal Voz Cosmopolita, editado pelos trabalhadores do ramo de hotéis, restaurantes e cafés. No ano seguinte, saiu em Porto Alegre uma edição de 3 mil exemplares, por iniciativa do militante judeu-argentino Samuel Speisky um dos fundadores do Partido Comunista no Rio Grande do Sul.



Mas a obra teórica mais notável do comunista alagoano foi Agrarismo e industrialismo, publicada com o pseudônimo de Fritz Mayer em abril de 1926.[8] O subtítulo dessa obra já era um verdadeiro programa de pesquisa: “ensaio marxista- leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil” (Brandão, 2006). Note-se que esta é a primeira vez que no Brasil é utilizada a expressão “marxista-leninista” e provavelmente das primeiras vezes no mundo.[9] Também é notável a definição do “marxismo leninista” como “o marxismo da época burguesa imperialista e proletária revolucionária”, numa fórmula idêntica àquela avançada por Josef Stalin a respeito do leninismo em sua conhecida conferência de 1924 na Universidade Sverdlov.[10]

A tese principal anunciada no livro de Brandão era a de que existiria no Brasil um conflito entre as forças agraristas e as forças industrialistas. Mas esse antagonismo apareceria sob formas variadas. As razões das revoltas militares de 1922 e 1924 poderiam ser encontradas, fundamentalmente, nas contradições existentes entre o capitalismo inglês e o capitalismo norte-americano, entre fazendeiros de café e industriais, entre os capitalistas e a pequena burguesia e entre os capitalistas e os operários e trabalhadores do campo (Brandão, 2006, p.26). A essas causas, consideradas “econômicas” e, portanto, graníticas,[11] Brandão somava causas políticas – a situação revolucionária mundial, a vontade de dominação dos grandes industriais e as reivindicações eleitorais da pequena-burguesia – e psicológicas – “o espírito de revolta” (Brandão, 2006, p.27-28).

Brandão não foi preciso em sua análise da sociedade brasileira; oscilando em sua terminologia. Ora definia a economia nacional como “agrária” e “feudal” (Brandão, 2006, p.33), caracterizando os trabalhadores rurais como sujeitos à “servidão medieval” (Brandão, 2006, p.34), o coronel como “novo barão feudal” (Brandão, 2006, p.48);[12] ora apresentava definições mais nuançadas, como quando escreveu: “Eis aí o que é o Brasil. País estapafúrdio, onde os extremos se chocam diariamente, onde as coisas mais incríveis são realizáveis, país semicolonial, semifeudal e semiburguês industrial” (Brandão, 2006, p.52).[13] Tais oscilações podem, entretanto, ser decorrentes da complexidade do objeto de análise e uma tentativa de registrá-la de forma mais adequada.

O que ficava claro, entretanto, era que na política brasileira predominariam os agraristas – latifundiários, cafeicultores, clericais e monarquistas – alinhados com os financistas ingleses. Contra esses se levantariam timidamente as diferentes frações industrialistas – industriais, pequeno-burgueses das cidades, republicanos e militares –, algumas mais decididas do que as outras. O proletariado deveria combater ao lado dos industrialistas contra o reacionarismo agrarista, mas sem depositar confiança na capacidade de seus aliados temporários levarem a luta até o final. Na rude dialética exposta por Brandão, o agrarismo seria a tese (afirmação), o industrialismo a antítese (negação) e a revolução proletária a síntese (negação da negação).

O folheto oscilava entre um ensaio de interpretação e um panfleto de agitação política. Seu estilo era direto, duro e cortante; concebido evidentemente para atingir um público amplo; mas nem por isso deixava de ser confuso, disperso e pretensioso. Brandão construiu seu argumento por enumeração. Ao invés de explicar suas teses procurava elencar o maior número de fatos que as comprovariam, não se preocupando muito seja com a relevância dos eventos apontados, seja com a consistência dos diversos fatos que comprovariam uma tese. Ao final do livro terminava com 36 palavras-de-ordem, das mais variadas, referentes à situação brasileira, e 118 referentes à situação internacional.

Os limites da obra são evidentes e não são muito diferentes daqueles específicos do marxismo brasileiro na época: superficialidade, diletantismo e, principalmente, desconhecimento da teoria marxista. O próprio Brandão enumerou posteriormente aquelas que considerava serem as principais deficiências de seu livro: “Não compreendeu claramente o caráter da revolução no Brasil. Nem suas etapas. Não deu a devida importância aos camponeses. Exagerou o papel dos revoltosos pequeno-burgueses” (Brandão, 1966, p.77). Mas era justamente nisso que Brandão considerou posteriormente serem suas “falhas” que se encontravam alguns dos méritos do livro.

Sob vários aspectos a obra de Brandão era notável e distanciava-se das teses a respeito da história latino-americana que começavam a ser esboçadas na Internacional Comunista (IC). Note-se, por exemplo, que embora afirmasse o caráter feudal ou semifeudal da formação social brasileira e a importância do conflito com o imperialismo, o jovem comunista não propunha uma revolução democrático- -burguesa, democrático-popular ou democrático nacional. Justamente por não “compreender” as “etapas” da revolução no Brasil, tal qual seriam afirmadas pela IC, o autor de Agrarismo e industrialismo podia defender, mesmo de modo confuso, uma estratégia de revolução permanente para o Brasil quando já era clara a condenação da mesma na União Soviética.

Essa surpreendente defesa da revolução permanente não tem sido suficientemente destacada pelos historiadores. Mas no texto de Brandão ela é explícita e aparece nos capítulos finais em dois momentos nos quais a analogia com as revoluções francesa e russa ganham destaque. Na primeira passagem, o comunista registrou:

Lutemos por impelir a fundo a revolta pequeno-burguesa fazendo pressão sobre ela, transformando-a em revolução permanente no sentido marxista-leninista, prolongando-a o mais possível, a fim de agitar as camadas mais profundas das multidões proletárias e levar os revoltosos às concessões mais amplas, criando um abismo entre eles e o passado feudal. Empurremos a revolução da burguesia industrial – o 1789 brasileiro, o nosso 12 de março de 1917 – aos seus últimos limites, a fim de, transposta a etapa da revolução burguesa, abrir-se a porta da revolução proletária comunista. (Brandão, 2006, p.133; grifos meus)

A segunda passagem é ainda mais significativa, uma vez que se insere na discussão a respeito das perspectivas políticas em fins de 1924. O comunista via no horizonte uma situação revolucionária e a necessidade de “uma frente única momentânea do proletariado com a pequena burguesia e a grande burguesia industrial” para derrubar o “fazendeiro de café” (Brandão, 2006, p.61). Não estava claramente definido no texto a quem caberia a direção dessa “frente única momentânea”, mas tudo leva a crer que esse papel deveria ser da pequena-burguesia:

Temos, pois, em perspectiva, sérias batalhas de classes, isto é, uma situação revolucionária. Se os revoltosos pequeno-burgueses souberem explorar a rivalidade imperialista anglo-americana e a luta entre os agrários e os industriais, se procurarem uma base de classe para a ação, se o proletariado entrar na batalha e se essas contradições coincidirem com a luta presidencial e as complicações financeiras, será possível o esmagamento dos agrários. (Brandão, 2006, p.149)

A afirmação do papel dirigente da pequena-burguesia afastava as teses de Brandão daquelas que vieram a predominar na Internacional Comunista e no PCB a respeito da burguesia nacional. Mesmo considerando que, em comparação com os latifundiários, o “burguês industrial não é tão reacionário” (Brandão, 2006, p.46), Brandão identificava claramente os nexos dessa burguesia industrial com o imperialismo norte-americano. A diferença maior, entretanto, residia no modo como o comunista alagoano parecia perceber a articulação entre a revolução proletária e a revolução agrária. Mais uma vez a analogia com a França e a Rússia aparecia:

Na Rússia, a revolução operária, das cidades, coincidiu com a revolução camponesa. No Brasil, a revolução dos operários industriais contra o regime burguês industrial, regime do salariado, irá coincidir com a revolução agrária, dos trabalhadores rurais contra o regime agrário, regime feudal, regime de servidão. Fundir os dois movimentos num só – transformar o nosso 1789 numa revolução permanente, da qual brotará o nosso 7 de novembro de 1917 – tal deve ser uma das obras fundamentais dos comunistas no Brasil. (Brandão, 2006, p.149-150; grifos meus)

A coincidência das duas revoluções – operária e agrária –, antevista pelo comunista, deixava seu esquema menos nítido. Se a questão agrária permanecesse, a ponto de coincidir com a solução da questão operária, qual seria o papel da revolução liderada pela pequena-burguesia? No argumento do autor de Agrarismo e industrialismo a revolução da pequena-burguesia parece ser apenas um momento necessário para retirar os entraves ao livre desenvolvimento dos conflitos sociais e políticos; a antessala imediata da “luta entre a pequena-burguesia triunfante e a revolução proletária” (Brandão, 2006, p.150). Mas o texto não é completamente claro a respeito e em vários momentos parece contradizer-se.

Apesar das inconsistências presentes na obra de Brandão e de seus evidentes limites ela é mais interessante e original do que acreditou uma crítica simplificadora. A evolução política de seu autor, entretanto, bloqueou o desenvolvimento teórico de algumas importantes passagens, particularmente aquelas nas quais era anunciada a estratégia da revolução permanente. O ecletismo de suas teses, nas quais a noção de etapa era articulada com uma estratégia aparentemente incompatível, não encontrou solução no âmbito dos estreitos quadros teóricos da teoria staliniana para a qual Brandão convergiu.[14]

O militante contra o esquecimento

Mesmo quando citado pela historiografia, Octavio Brandão aparece como um personagem da década de 1920, o qual como outros teria transitado do anarquismo ao comunismo. O livro Agrarismo e industrialismo foi tratado, assim, como sua única contribuição relevante, a primeira tentativa de análise marxista da realidade brasileira; “um livro fundador”, nas palavras de João Quartim de Moraes (2006, p.11-18). Combates e batalhas, cuja narrativa se encerra em 1931, por sua vez, tornou-se uma fonte indispensável; “um monumental documento histórico”, segundo Paulo Sérgio Pinheiro (1978, p.XVII). O restante da vasta produção bibliográfica do comunista foi, entretanto, amplamente ignorada e o resultado é um retrato muito parcial de sua vida e realizações, quando não do próprio movimento operário brasileiro.

Há ainda muito a descobrir na documentação de Octavio Brandão. A complexidade dessa notável figura e a diversidade de seus interesses tornarão difícil a missão desses biógrafos e intérpretes. Marcado pela tragédias do século XX, Brandão nem sempre foi consciente delas.[15] Mas elas emergem de modo incontornável em cada momento de sua vida devido a seu empenho em registrar cotidianamente suas atividades, colecionar documentos, escrever suas recordações, juntar poemas, coletar informações, anotar eventos e salvar a memória de seus combates. Sua filha Dionysa Brandão Rocha narrou assim essa atividade de memorialista de si e de uma época:

Octavio Brandão guardava com zelo e carinho seu passado de poeta naturalista, libertário, anarquista e comunista […]. Vivendo várias décadas na clandestinidade e quinze anos de exílio, tendo atravessado uma guerra (1941 a 1945), conseguiu manter inúmeras anotações, trabalhos inéditos, poesias, em resumo, as seis coleções, guardadas até em sacolas de compras e espalhadas em casa de amigos e vizinhos. (Rocha, 2005, p.54)

Essa obcecada atividade de colecionador e memorialista foi cortada pelos perigos da própria vida. Preservar seus textos foi para Brandão tão perigoso quanto viver e tão difícil quanto escrever. Perseguido pela polícia e tendo que mudar de residência constantemente, o militante comunista empenhou-se em impedir que as condições adversas que enfrentava apagassem os registros de sua existência e de sua obra. Em um pequeno documento de três páginas datilografadas em 1942, é possível ler o pequeno inventário que fez a respeito dos riscos dessa atividade: “Em nossa vida, além de toda uma série de pequenos autos de fé, houve três grandes destruições de nossos materiais” (Brandão, 1942, p.1).

A primeira dessas perdas ocorreu em 1923-1924 e é reveladora das condições de vida de Brandão. Incessantemente caçado pela polícia, o jovem comunista procurava ocultar os materiais por ele produzidos ou coletados de modo a salvá-los da sanha de seus perseguidores. Em uma dessas ocasiões pôs sua coleção em uma maleta e a enterrou nos fundos de um casebre localizado em um subúrbio do Rio de Janeiro. O que a polícia não conseguiu fazer ficou a cargo da natureza. As condições nas quais a clandestina maleta foi escondida eram precárias e o “cupim e a umidade destruíram a quase totalidade dos materiais” (Brandão, 1942, p.1).

Na segunda ocasião a polícia foi não apenas o motivo como também o agente da destruição. Depois de insistente procura, em julho de 1930 os gendarmes foram bem-sucedidos e confiscaram uma mala cheia de documentos de Brandão em uma casa localizada em Águas Férreas, novamente no Rio de Janeiro. Uma pequena parte desses documentos foi devolvida a Octavio Brandão e sua esposa, a poetisa Laura Brandão, mas a maior parte deles ficou apreendida. O que restou em poder de seus perseguidores pode ter sido definitivamente perdido, segundo a hipótese do autor do documento: “Por ocasião do movimento popular de outubro de 1930, a multidão invadiu a sede da polícia, devastou-a, lançou na rua e destruiu uma quantidade colossal de materiais aí encontrados. Entre estes materiais estariam os de Laura e Octavio?” (Brandão, 1942, p.1).

Essas duas primeiras perdas registradas ocorreram, assim, durante o período no qual Brandão foi mais ativo politicamente, ocupando posições de responsabilidade na direção do PCB, na organização sindical – principalmente na cidade do Rio de Janeiro – e como intendente. A narrativa de Combates e batalhas não deixa lugar a dúvidas a respeito da importância de Brandão nessas primeiras décadas do século XX. A destruição desses documentos tem, portanto, um valor incomensurável. A última perda registrada no inventário de 1942 ocorreu em outubro ou novembro de 1941, no exílio e em condições muito diferentes.

Desde o final dos anos 1920 Brandão enfrentava em sua luta pela memória não apenas a polícia como também seus companheiros de partido. O líder comunista foi preso em 1º de março de 1930 pelo governo de Washington Luís, quando voltava de Buenos Aires. Em 1930, foi “solto pela multidão a 24 de outubro”, mas preso novamente no dia seguinte, “depois da ‘vitória’ da pretensa ‘revolução’” que levou Getúlio Vargas ao poder. Foi posto em liberdade em 7 de fevereiro de 1931 apenas para ser delatado e preso novamente em abril de 1931. Ficou 56 dias na cadeia até ser deportado juntamente com sua esposa e três filhas, Dionysa, Vólia e Satva; a mais velha, com apenas nove anos de idade (Brandão, 2005, p.98-99). Depois de desembarcar em Bremen, a família Brandão se hospedou na casa do cônsul brasileiro Josias Leão, e, a seguir, procurou fixar residência em Berlim. Tendo recebido ordens para deixar a Alemanha, Brandão refugiou-se com sua família na União Soviética.

Segundo relata, em seu novo lar, os “trabalhadores da União Soviética fraternalmente abriram as portas à família de exilados brasileiros. Deram-lhes o pão, o teto e a possibilidade de continuar a luta pela libertação nacional e social do Brasil e da Humanidade” (Brandão, 2005, p.99). A situação real foi, entretanto, muito diferente. A família Brandão era formada então por seis pessoas. Sua filha Valná descreve o quarto do velho Hotel Lux onde todos ficavam alojados como “tão ordinário […] que a primeira coisa que me lembro na vida é um buraco no teto e a água pingando de cima numa bacia”. O teto que a família Brandão recebera dos “trabalhadores da União Soviética” tinha uma goteira.

Em 1941, a família Brandão recebeu a ordem de evacuação. Moscou estava em perigo, acossada pelo exército nazista e a Internacional Comunista, onde ele trabalhava, mudou seus escritórios. O destino foi a cidade de Ufá, nos Urais. Foi então que pela terceira vez os papéis de Octavio Brandão se perderam. Após sua saída de Moscou teve início a destruição pelo Exército Vermelho de tudo o que pudesse comprometer a resistência ao nazismo ou beneficiar o invasor. Segundo Brandão, “durante nossa ausência [os documentos que ficaram no apartamento] foram queimados” (Brandão, 1942, p.2).


Após uma breve descrição das condições nas quais ocorrera cada uma das destruições, apreensões ou perdas de materiais, Brandão acrescentava uma lista daquilo que havia se perdido. Em 1941 as perdas foram bem maiores e originais de livros e artigos nunca publicados podem ter sido definitivamente levados pelo fogo.[16] Poucos meses depois falecia sua querida esposa Laura. As perdas atingiam a vida e o ascético espírito do comunista, já em sua meia-idade, sentiu o duro golpe. Escrevendo anos mais tarde a respeito, relatou:

Durante a ausência nos Urais, inúmeros materiais foram retirados do Hotel Lux e queimados em Moscou. Deste modo, na voragem da guerra, perdi as relíquias mais preciosas: as cartas e poesias de Laura. Perdi-a, pois, duas vezes. Perdi também os frutos de dez anos de trabalho tenso e intenso: obras inéditas, artigos, estudos, cadernos de apontamentos – queimados durante a evacuação dos Urais ou incendiados pelas bombas dos aviões nazistas. Perdas terríveis, definitivas, irreparáveis. (Brandão, 1970, p.124)

O inventário de 1942 registra 49 conjuntos documentais aparentemente destruídos no ano anterior. Os mais sentidos foram aqueles produzidos por Laura, ao lado dos quais escreveu: “Perda terrível, irreparável!” (Brandão, 1942, p.2-3). É possível, entretanto, que outras perdas tenham acontecido e não tenham sido registradas por Brandão. É o que pode se inferir de uma nota a caneta inserida no original datilografado de A luta libertadora, de março de 1970. Nela o autor descreve uma perda anterior a 1942 que não havia sido registrada no inventário deste ano: “Ao partir para a Europa, em 1931, deixei com o pai de Laura dois caixões, cheios de livros, jornais etc. Ao voltar em 1946 procurei-os por toda parte. Nem a mais vaga notícia” (Brandão, 1970). Desse conjunto documental Brandão não deu outras informações.

Também podem ter ocorrido perdas a partir de 1964. Após o golpe civil- -militar de 1º de abril desse ano, Brandão ficou muito receoso de que seus escritos e materiais de pesquisa fossem novamente confiscados e procurou escondê-los. Sabe-se que seu amigo Antonio de Medeiros Gualter (1891-1966) recebeu parte dessa documentação com a missão de escondê-la. Segundo a bisneta de Gualter, a historiadora Simone Kropf (2004), “por ocasião do golpe de [19]64, Brandão ficou preocupado com possíveis buscas em sua casa e pediu a meu bisavô para guardar esses documentos com ele. E então eles ficaram no sótão da casa por muito tempo e depois passaram a ficar sob a guarda de minha avó. Seu nome é Maykra Gualter Kropf”. Graças aos esforços da família Gualter Kropf esses documentos foram preservados. Mas Antonio teria sido o único a esconder o material de Brandão ou esse último apelou a outros amigos ainda desconhecidos?

O profeta banido

 Os golpes contra sua memória mais sentidos por Brandão vieram de seus próprios companheiros. Com sua chegada à União Soviética teve início o que Valná Brandão chamou de período de discriminação e ostracismo. Em “abril de 1932 já voava aos ‘camaradas da Seção Latino-Americana da Internacional Comunista’ a denúncia de que Octavio Brandão, supostamente, tivera ligações com Josias Leão, ‘um dos piores inimigos, um traidor do proletariado...’, denúncia, ia dizendo, enviada do Brasil para a URSS e assinada por um tal ‘Bernardo’” (Tchudínova, 2005, p.45-46). Essas “ligações com Josias Leão” podem ter sido, entretanto, apenas o pretexto. Desde o final dos anos 1920, o incansável comunista se encontrava em rota de colisão com o grupo dirigente do PCB e com a tradução que este fazia da linha do terceiro período aprovada no 9º Plenum do Comitê Executivo da Internacional Comunista, em fevereiro de 1928.[17]

Octavio Brandão e camaradas da Internacional Comunista na URSS.

Os choques se fizeram mais evidentes na Conferência dos Partidos Comunistas realizada em Buenos Aires em junho de 1929. Nela, Brandão recebeu o que chamou de “um golpe terrível” (Brandão, 1978, p.379). Tendo se oposto ao que considerava a “absurda Revolução Soviética imediata para o Brasil da época”, o comunista ficou sob o fogo cerrado de seus companheiros: “Ouvi dezesseis discursos de ataques, inclusive pessoais. Procuraram fazer tábua rasa de minha vida, obra e luta”. Isolado e atacado, Brandão se viu obrigado a “aceitar e defender a linha da Revolução Soviética imediata, por disciplina, para não ser expulso do PCB como ‘traidor’ e porque ela foi preconizada em nome da Internacional Comunista” (Brandão, 1978, p.379-380).[18]

Voltando ao Brasil após sua viagem a Buenos Aires, Brandão foi demitido da direção do partido “por proposta de Astrojildo e por ordem superior”, conforme afirmou (Brandão, 1978, p.380). Também foram afastados da direção o médico Leôncio Basbaum, antigo encarregado da juventude comunista, o metalúrgico José Cosini e o gráfico Ferreira da Silva. O próprio Astrojildo Pereira seria destituído da secretaria geral do partido. A principal acusação que recaiu sobre a primeira geração de comunistas brasileiros era a de não pertencerem a classe operária e serem “intelectuais”. Ao final de 1930 quase todos os fundadores do PCB encontravam-se fora dele, um grande número devido a expulsões (Rodrigues, 1996, p.377). Apesar das condições precárias e de seu alijamento político, continuou um militante ativo, mesmo no exílio, trabalhando primeiro nos escritórios da Internacional Comunista e depois escrevendo e traduzindo programas para a Rádio de Moscou (Brandão, 1978, p.102).[19]

A dissolução da antiga direção marca um período de grande instabilidade no grupo dirigente comunista. Entre 1930 e 1940, onze diferentes pessoas ocuparam o posto de secretário-geral do partido, segundo Leôncio Martins Rodrigues (1996, p.378). O grande número de prisões, particularmente após o levante comunista de 1935, contribuiu para essa instabilidade. Os dirigentes presos eram muitas vezes substituídos rapidamente, cedendo lugar a novos e inexperientes militantes. Mas os acertos de conta internos e os expurgos também foram responsáveis pelas sucessivas mudanças na cúpula do Partido.[20]

Um novo giro, oposto à proletarização, ocorreu a partir de 1934 e contribuiu para mudar definitivamente a cara do PCB. Depois de ter marchado à frente de um exército de militares revoltosos que por mais de dois anos enfrentou as forças armadas regulares e percorreu 25 mil quilômetros, Luiz Carlos Prestes partiu para o exílio. Brandão havia sido favorável ao apoio do PCB à chamada Coluna Prestes-Miguel Costa, mas a maioria do partido resistiu a essa ideia. No exílio, Prestes revisou algumas de suas posições políticas e iniciou uma aproximação com a Internacional Comunista, por intermédio do secretário-geral do Partido Comunista Argentino, Rodolfo Ghioldi, e do chefe do Secretariado Latino-Americano da Internacional Comunista, Abraham Guralski. A direção do PCB, entretanto, primeiro com Astrojildo Pereira e, depois, com seus sucessores, manteve suas reservas para com Prestes. Em 1931 o jovem capitão exilou-se na União Soviética, a convite do governo desse país, e, em 1934, mediante a pressão da Internacional Comunista, Prestes foi aceito nas fileiras do PCB.

Junto com o capitão afluíram muitos militares que gradativamente ocuparam as posições dirigentes do partido. O primeiro deles foi Antonio Maciel Bonfim, conhecido como Miranda, ex-sargento, nascido na Bahia e eleito para a secretaria geral do partido em 1934.[21] Entre 1935 e 1943, anos de grande repressão, a maior parte das direções nacionais e regionais foram aprisionadas. Novos militantes, cada vez mais ex-oficiais e suboficiais do exército, assumiram funções dirigentes. A anistia de 1945 colocou os comunistas em liberdade, mas os antigos quadros civis não recuperaram suas posições. Nesse ano, o próprio Prestes assumiu a secretaria geral e consolidou a posição dos militares no partido.[22] O partido deixou de ser operário e comunista e passou, cada vez mais, a assumir uma feição pequeno-burguesa e patriótico-nacionalista. A nacionalização do marxismo brasileiro foi importante para o crescimento e expansão do PCB, mas acabou por descaracterizá-lo.

A ascensão dos militares ao comando do partido eclipsou definitivamente Brandão. Tendo sido um dos primeiros críticos do chamado Terceiro Período e do levante militar de 1935 não seria perdoado por aqueles que estiveram à frente dessa operação. Paradoxalmente, os pressupostos teóricos do giro patriótico-nacionalista dos comunistas poderiam encontrar amparo em algumas teses da pioneira análise de Brandão sobre a formação social brasileira. O PCB “nacionalizado” considerava, assim, como Brandão, que o conflito entre o imperialismo inglês e o norte- -americano, por um lado, e a existência de um latifúndio de tipo feudal, por outro, caracterizavam a formação social brasileira. Levando às últimas consequências essa análise, o partido imprimiu a seu programa um conteúdo nacional-popular.

Mas Brandão mostrou-se fortemente crítico a essa linha política. Assim, em Análise, manuscrito inédito datado de 1966 e dedicado à história do PCB, expôs uma notável caracterização desse partido, a qual apresenta uma grande coincidência com as acusações que as esquerdas dissidentes dirigiram contemporaneamente a seu grupo dirigente. Segundo o comunista, já com 70 anos:

Desnaturado pelo nacionalismo burguês e nacional-reformismo, o PCB virou “nacionalista” nos últimos anos. Desfraldou essa bandeira que se presta a todas as confusões. Deu o título de “nacionalista” a um bando de agentes dos latifundiários e da grande burguesia, a fim de ter o pretexto de apoiá-los nas eleições. Marchou a reboque da chamada “burguesia nacional-progressista” com os Brizola. Foi arrastado à aventura de 1963-1964, a serviço do governo João Goulart. Pregou a necessidade de um governo “nacionalista”. (Brandão, 1966, p.24)

Essa adesão do partido ao nacionalismo explicava-se pela forte presença em suas fileiras e em seus quadros dirigentes de militantes provenientes das forças armadas e da pequena-burguesia urbana. Sem nunca ter se enraizado profundamente na classe operária o PCB tornou-se vulnerável e sofreu, sem muita resistência, os efeitos de uma rápida transformação de sua base social. Segundo o comunista: “O atual Partido Comunista do Brasil é um partido da pequena-burguesia urbana em tudo e por tudo: pela ideologia e linha política, pela composição de classe e métodos, pela direção e base” (Brandão, 1966, p.8).[23]

Embora a historiografia oficial do PCB tenha desvalorizado a figura de Octavio Brandão e justificado seu afastamento do Partido como um efeito de sua complexa personalidade, os documentos que ele deixou permitem apresentar a hipótese de que esse afastamento tinha fortes razões políticas. Não era apenas à direção pequeno-burguesa do Partido que o velho comunista se opunha. Sua contestação era contra, principalmente, a política dessa direção e, particularmente, a aproximação dessa última ao nacionalismo burguês. Mas a crítica de Brandão carecia de uma consistência capaz de atrair alguma das diversas dissidências comunistas que surgiram na década de 1960.

Embora crítico da direção do PCB e de sua política o militante alagoano permaneceu ainda nos marcos teóricos e políticos dessa organização. Sua oposição ficou, assim, no meio do caminho e tornou-se incapaz de arregimentar os jovens que desejavam uma ruptura radical com o velho PCB. É possível supor que Brandão sequer quisesse estimular essa ruptura e que não desejasse, senão, recuperar seu lugar no partido, ou pelo menos na sua memória. Sua última intervenção na política interna dos comunistas, registrada nas páginas do jornal Imprensa Popular, dá consistência a esta hipótese (Brandão, 1956). Seu objetivo nela era exigir uma política para os velhos quadros da organização, dentre os quais ele próprio. Essa intervenção fracassou e Octavio Brandão recebeu dura oposição nas páginas do mesmo jornal, episódio que iria afastá-lo de modo quase definitivo do partido.

Reconhecer a derrota política de Brandão e suas razões é importante, mas é igualmente importante recuperar seu contraditório papel na história do comunismo brasileiro. O que a historiografia comunista fez até o momento foi banir esse incômodo personagem à margem da história. Reencontrar seu lugar é fundamental para uma renovação crítica dos estudos sobre o movimento operário.

 

*Este ensaio foi orginalmente publicado em Crítica Marxista, nº 34, 2012.

**Professor livre-docente; diretor do Instituto de Filosofia em Ciências Humanas da Unicamp; Membro do Comitê de Coordenação da International Gramsci Society, do corpo editorial dos periódicos Outubro e International Gramsci Journal e do Comitê Científico das coleções Marx 21 (editora da Unicamp) e Per Gramsci (International Gramsci Society e Centro interuniversitario di ricerca per gli studi gramsciani). Atua na área de Ciência Política, com ênfase na história do pensamento político italiano e brasileiro e história da Ciência Política. Foi diretor do Arquivo Edgard Leuenroth (2009-2017).

Notas:

1 Grafa-se aqui o nome de Octavio Brandão tal qual ele mesmo o fazia, sem acento. Escritor compulsivo, Brandão deixou uma quantidade enorme de documentos, textos, anotações e livros que, graças a ação de seus familiares, encontram-se hoje a salvo no Arquivo Edgard Leuenroth – Centro de Pesquisa e Documentação Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Ao todo encontram-se guardados e acessíveis à consulta 5.463 documentos textuais, 1.422 livros, 744 fotografias, 218 documentos iconográficos, 165 folhetos, 77 mapas, 54 títulos de periódicos, 7 objetos tridimensionais e 3 cartazes.

2 Constrangido com o episódio, Jaime Cubero escreve a respeito de um suposto Partido Comunista Libertário. Os documentos, entretanto, não fazem referência a um partido com esse nome. Cubero também afirma que Oiticica teria publicado uma versão definitiva das bases para a criação de tal partido, o qual seria um “catecismo comunista” (Cubero, 1997, p.32). As afirmações de Pereira (1976) e Cubero (1997) a respeito do episódio são imprecisas. Oiticica (1919, p.1) é claro ao dizer que seu texto publicado em Spartacus não havia sido discutido pelo Congresso, do qual ele não pôde participar no segundo dia, e que era apenas um esboço de um “catecismo anarquista”.

3 “No dia 15 do corrente mês de Abril os autores deste opúsculo tinham combinado de fazer um trabalho tão completo quanto lhes fosse possível sobre as doutrinas socialistas libertárias, destinando esse trabalho aos trabalhadores brasileiros. Mas poucos dias depois, diversos companheiros demonstraram-nos a conveniência de ser esta publicação posta à venda antes de 1o de Maio” (Negro; Leuenroth, 1919, p.3).

4 O relatório do delegado brasileiro ao 3o Congresso da Internacional Comunista (IC) revela a original confusão promovida por esses jovens militantes entre essas diferentes perspectivas políticas e ideológicas. Questionado por um jornal russo a respeito da maçonaria, o delegado Antonio Canellas respondeu: “Considerando que a Maçonaria de rito escocez, como as demais seitas religiosas, é negócio privado, de ordem moral, o nosso Partido, que conta, entre os seus aderentes alguns bons camaradas maçons cuja ação revolucionária no seio de sua seita é notável e notória, decerto não julgará de grande urgência uma campanha contra a maçonaria” (Relatório Canellas, 1982, p.32). Zaidan Filho (1989) destaca esse vínculo com a maçonaria e o positivismo, enquanto Marçal Brandão (1997) tenta minimizá-lo, contrariando as fortes evidências presentes no relatório Canellas. O estudo biográfico de Everardo Dias – primeiro, anarquista, livre-pensador e maçom, e, depois, comunista e maçom – realizado por Marcelo Ridenti (2010) reforça a tese de Zaidan Filho.

5 Em texto de 1956 dizia “estar sempre lutando, como um caboclo do Nordeste” (Brandão, 1956, p.3).

 6 Os estudos monográficos são raríssimos e por isso merecem destaque Amaral (2003) e Plancherel (1997).

7 Sobre o debate a respeito da memória de Brandão aberto pelo seu artigo “A política de quadros”, publicado no jornal Imprensa Popular dos dias 26 e 27 de outubro de 1956, ver Amaral (2003, p.278-284).

8 Para a datação da composição da obra, ver João Quartim de Moraes (2006, p.12; 2007, p.141-142).

 9 Aqui é necessário fazer pequenas correções ao que diz Quartim de Moraes (2007, p.41-43). Apoiando-se na enciclopédia Marxism, Communism and Western Societies, tal autor afirma que coube a Deborin utilizar pela primeira vez a fórmula “marxismo-leninismo” em março de 1928, e que Stalin só a teria utilizado no final dos anos 1930, em sua contribuição à História do Partido Comunista da União Soviética. A expressão aparece, entretanto, já em abril de 1927, nas teses sobre a revolução chinesa redigidas por Gregory Zinoviev (1932). Stalin, por sua vez, a utiliza em novembro de 1928 (1954, p.291).

10 Segundo Stalin: “O que é, então, em última análise o leninismo? Leninismo é o marxismo da era do imperialismo e da revolução proletária” (1953, p.73). A coincidência entre as formulações de Stalin e Brandão dá grande força à hipótese, apresentada por João Quartim de Moraes (2007, p.139-143), de que o comunista alagoano teria tido conhecimento direto ou indireto de alguns textos do secretário-geral durante a redação de Agrarismo e industrialismo.

11 Segundo Brandão: “A Economia é em Sociologia o que o granito é em geologia” (2006, p.37).

12 Para o comunista, “o Brasil ainda é, no conjunto, um país medieval, atrasado, sob este ponto de vista, cinco séculos no mínimo” (Brandão, 2006, p.48).

13 Note-se que, na primeira edição do livro, Brandão, nessa passagem, escreveu apenas “feudal”, ao invés de “semifeudal”.

14 Sobre a convergência teórica de Brandão e a teoria staliniana, ver Quartim de Moraes (2007, p.143-144).

15 É notável, por exemplo, sua demora em perceber o significado do stalinismo. Em A luta libertadora – livro finalizado em março de 1970 –, entretanto, traçou um retrato pungente das perseguições às quais foram submetidos os comunistas estrangeiros radicados em Moscou. Segundo narrou, escapou da morte nas mãos da polícia política stalinista por pouco. Ver Brandão (1970).

16 É possível, também, que inventariando apenas um ano depois as perdas, Brandão tivesse maiores informações do que dispunha com relação às anteriores. Afirma-se a hipótese de que esses materiais foram queimados seguindo o relato do autor; mas não pode ser liminarmente descartada a hipótese contrária, a de que esses materiais tenham sido sequestrados e preservados a salvo em arquivos soviéticos. Não seria a primeira vez que isso teria acontecido.

17 O 9o Plenum caracterizou a existência de um terceiro período de crise do capitalismo, o qual deveria conduzir a morte final desse modo de exploração. Estaria assim aberto o período para um decisivo e imediato levante das massas trabalhadoras em todo o mundo, para o qual as seções da Internacional deveriam estar preparadas. Ver a respeito Broué (1997).

18 Brandão tornou públicos esses episódios em 1956, nas páginas do jornal Imprensa Popular.

19 O período é largamente descrito por Brandão em texto ainda não publicado: Brandão (1970).

20 É de 1937, por exemplo, a expulsão do secretário-geral do Partido em São Paulo, Herminio Sacchetta, acusado de trotskismo.

21 Vários comunistas e ex-comunistas afirmaram em textos autobiográficos que Miranda era um agente da polícia antes de sua prisão em 1940 ou que teria colaborado com seus algozes depois da prisão (Rodrigues, 1996, p.379-380).

22 Prestes permaneceu no cargo até 1980. Seus sucessores, Giocondo Dias e Salomão Malina, também haviam sido militares.

23 Repare-se que apesar da agremiação ter assumido o nome de Partido Comunista Brasileiro em 1960, Brandão, em 1966, continuava a chamá-la pelo nome de sua fundação.

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Edição: CCOB

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